Não vou responder ao que é provocação, petulância, má criação. Deixei de o fazer. De vez. O que não me impede de ler o que aparece publicado, e ai procurar “o trigo” das dúvidas. Aliás, acho curioso que se acusem marxistas de serem acríticos seguidores de uma cartilha, de usarem Marx como cego argumento de autoridade, e também de heterodoxos, quase de hereges por, a partir de Marx e da realidade que tanto se transforma, poderem, aqui e ali, sair do trilho que estaria certo no século XIX e deixou de o estar. Como o ilustra cabalmente o prefácio de Engels, de 1872 ao Manifesto de 1848.
Assim, vou aproveitar um comentário que me foi enviado, para (me) esclarecer e procurar esclarecer, ignorando quem o fez, como o fez e as intenções com que o fez. Até agradecendo algumas pistas apontadas e por onde entro e vou, fazendo o meu caminho.
Marx disse que as mercadorias, incluindo a força de trabalho, eram trocadas pelos seus valores. Em conformidade, a troca das mercadorias, de todas as mercadorias, era uma troca de equivalentes. Disse, também, que a mais-valia, o tal valor suplementar, era criada pela força de trabalho que criava mais valor do que o seu próprio valor, por fornecer mais trabalho do aquele que fora necessário para a sua produção.
Ora foi afirmado, num episódio anterior, que a troca da força de trabalho é uma troca desigual, ao contrário do que sucede com a troca das restantes mercadorias. E isso acontece porque a jornada de trabalho está dividida em duas partes, uma para o trabalhador (trabalho necessário), outra para o capitalista (trabalho excedente). Por isso, a troca das mercadorias é uma troca de equivalentes, como disse Marx, e é (também) uma troca desigual no que respeita à força de trabalho? Mas para o entender é preciso deixar a grilheta do sim OU não e já ter passado para o dialéctico sim OU/E não. Quer dizer, a troca de mercadorias é uma troca equitativa e a troca da força de trabalho é uma troca desigual? Assim se reconhece que, no capitalismo, a troca, em geral, é uma troca equitativa, e que a troca da força de trabalho, ao contrário da troca das restantes mercadorias, é - também - uma troca desigual!
Por a troca da força de trabalho ser uma troca desigual, é precisamente através dessa troca desigual que ocorre a criação e a apropriação de uma parte do valor criado pelos proprietários dos meios de produção que, por o serem, puderam trocar desigualmente a força de trabalho. O que se concretiza na esfera produtiva, quando – e se – se acrescenta valor. Na produção das mercadorias é gerado o seu valor; na troca das mercadorias, na relação social da troca, realiza-se a troca, através do dinheiro, pelo que o ciclo apenas termina na troca M’(mercadorias criadas na produção)-D’(dinheiro). Na troca, de facto, não é gerado qualquer valor, apenas é realizada, em capital dinheiro, a apropriação de valores criados na produção.
Há quem não tenha este entendimento. Julgo que estão errados, e esse erro, nalguns casos, tem a curiosidade de ir buscar o conceito de Marx de mais-valia e de o transplantar de (…P…), produção, para M´-D’, para a troca. Até porque a parte do valor apropriada é a que não é paga ao trabalhador na produção, isto é, a parte suplementar criada pela mercadoria que o trabalhador vende e que lhe não é paga. Nada acrescenta mais do que contém, dizia Lavoisier e outros – e o materialismo! –, mas a mercadoria força de trabalho, ao acrescentar valor, só recebe em troca uma parte do valor que acrescentou (por exemplo, com o trabalho vivo das costureiras que produzem camisas, e com o trabalho cristalizado nos meios de produção – fábrica, energia, máquinas de costura, pano, linhas, botões – propriedade de quem, por ser proprietário da forma de valor capital-dinheiro, também compra a força de trabalho)
O modo de produção capitalista caracteriza-se pela produção de mercadorias, e toda a produção é efectuada tendo por objectivo D-D’ (troca de dinheiro por mais dinheiro), objectivo que se mantém mesmo quando não haja produção e apenas transferência de mais-valia antes criada.
O valor das mercadorias só pode resultar do valor das outras mercadorias que foram usadas na sua produção. Marx, para continuar o que o David Ricardo deixara incompleto na sua teoria do valor, teve o génio de descobrir que o valor das mercadorias não era resultado do valor das que entravam na sua produção, mas de uma mercadoria especial, a força de trabalho, que único motor da dinâmica necessidades-utilização e transformação de recursos. E tudo se explica pela criação de valor na sua duplicidade valor de uso/valor de troca formando uma unidade dialéctica. O valor das mercadorias (M') é criado pelo uso de uma mercadoria que acrescenta valor (de uso/troca) ao valor das mercadorias que as integram (M).
A exploração existe, no capitalismo como noutros modos de produção que o antecederam. O que está e sempre esteve em causa é explicá-la. David Ricardo dissera que o trabalho era a medida do valor, Adam Smith que o trabalho cristalizado comprava trabalho vivo. Mas não explicaram como era gerada a mais-valia (e o seu epifenómeno, o lucro, que resulta da relação da mais-valia apropriada com o capital total investido, não fazendo qualquer distinção entre o constante e o variável). E foi este problema fulcral que Marx terá resolvido, com a descoberta da força de trabalho, que tem o “dom” de fornecer mais valor que aquele que é necessário para a sua própria produção.
Aliás a distinção entre trabalho e mercadoria-força de trabalho ainda não aparece em o Manifesto, o que só foi corrigido uma década depois, quando Marx aprofundava os seus estudos de economia (sem que se alterasse o documento original).
Há quem, de boa fé, não pense assim. A meu ver – e não afirmo estar a ver bem, mas estou convicto de que estou –, porque não penetraram em alguns mecanismos de raciocínio a que só se consegue chegar pela abordagem materialista dialéctica.
Parafraseando alguém, desculpem o lençol mas, como se sabe, isto dá pano para mangas. E mais mangas virão. Quando eu julgar oportuno e outras tarefas o consentirem.