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quarta-feira, março 24, 2021

para aula prática

 24.03.2021

 

Nas leituras matinais, (...) ao ler o editorial do director do Público tive uma reacção inhabitual.

 

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Reacção inhabitual relativamente às que me provoca o sr. director, com o pessoal gravame de tal indivíduo alimentar a minha permanente dúvida sobre a importância que tenho (ou que me dou), por nunca dar guarida e resposta (isto é, publicação) a cartas minhas.  

 

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Pois o sr. Manuel  Carvalho editorialou um bom texto de qualidade, coloca bem o dedo numa ferida de fundo da formação social em que vivemos, fruto da correlação de forças sociais.

 

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Não o subscreveria na totalidade, até porque não conseguiu fugir à sua intervençãozinha (que pretende sempre escamotear, ou que não notória seja) no jogo político batoteiro que caracteriza o tempo em que estamos (e alguns somos).

 

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Referir as “investidas” do Bloco e do PSD no plano parlamentar revela a tendência para a redução da vida cívico-política a esse plano, rejeitando como inexistentes ou irrelevantes as outras em que as investidas (!) do PCP são preponderantes.

 

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Mereceria o “caso das barragens” outro relevo que o que é dado no documento da reunião do CC do PCP de 22 de Marco – “Beneficiando de importantes apoios públicos – ao contrário do que acontece com milhares de MPME – e da perspectiva de novas transferências a partir dos recursos disponibilizados no âmbito da UE, os grupos económicos têm da parte do Governo PS a cobertura e o financiamento para decisões contrárias aos interesses nacionais. São disso exemplo: (…) a venda de seis barragens pela EDP; ou os escandalosos benefícios fiscais aos grandes grupos económicos.?

 

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Tê-lo-á decerto, mas não no quadro do superficial, espumoso, “jogo político”.

 

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Tirando esse pecadilho (quem os não tem?), o texto de MC

serviria para uma aula prática de um curso do marxismo, exemplificando como, nos fundamentos desta leitura do caminho da sociedade  –  ou seja, no Manual do Partido Comunista -, antes do que, após o mergulho nas características do funcionamento do capital como relação de produção, se acrescentou:

“... o moderno poder do Estado é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa...”.

 

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De onde se partiria para o desenvolvimento, com léxico mais actual para a questão do poder político subordinado (por ausências, omissões e actos) ao poder económico dominante.

 

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Lamenta-se que, em termos de contributos para a informação que ajude à tomada de consciência dos cidadãos, tão raros sejam as denúncias de erupções epidé(r)micas de um tecido (social) de que se escondem as incuráveis úlceras.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Materialismo histórico - 38 (desemprego)

No modo de produção capitalista, escondido na capa (também ideológica) de “economia de livre mercado”, desemprego é a situação do trabalhador privado de emprego, não encontrar procura para a sua mercadoria, a força de trabalho.
A situação de desemprego é das mais dramáticas na vida dos trabalhadores pois, enquanto nessa situação, atinge-os naquilo que os define como seres humanos, na sua natureza intrínseca.
Não se trata – apenas – de não conseguir, no mercado, resposta para a oferta do que pretende vender (tempo de força de trabalho contra salário), mas de ser a si próprio, como ser humano, que vê negada a utilidade de criar ou tornar acessíveis produtos de que necessita para viver por via da troca pelos produtos que outros produzem e tornam acessíveis.
O desemprego é gerado, tendencialmente, pelos mecanismos de funcionamento do capitalismo. O desenvolvimento dos meios de produção, instrumentos e objectos de trabalho, provoca uma diminuição relativa do capital variável na composição orgânica do capital, o trabalho vivo é substituído pelo trabalho passado, transformado em meios de produção.
Por outro lado, em resultado da evolução histórica ao nível das relações de produção, da luta de classes, conquistas sociais impedem que os proprietários dos meios de produção possam tratar a força de trabalho como uma mercadoria igual às outras, e há conquistas sociais que fazem com que os proprietários dos meios de produção procurem acelerar a substituição de trabalho vivo, no seu interesse imediato na concorrência intra-classista. O que é contraditório com a necessidade da classe se apropriar de mais-valia, só possível com o emprego da força de trabalho dos trabalhadores.
Donde resulta a busca de intensificação da exploração (e de outras formas de reproduzir o capital na sua forma monetária). Uma das vias é a da transformação do desemprego em variável estratégica, pois o receio de perda de emprego – a instabilidade e precariedade do emprego – muito fragiliza os trabalhadores na sua luta. Pelos salários e, particularmente importante, na defesa e conquista de condições sociais que contrariam “trabalho sem direitos”.
Nesta breve nota, para a tornar mais impressiva, o emprego pode assimilar-se a mercadoria (força de trabalho) em armazém. Noutros termos, assim se cria o “exército industrial de reserva”.

segunda-feira, novembro 24, 2008

Materialismo histórico - 37

A lei tendencial da baixa da taxa de lucro pode parecer negada pela realidade pois justificar-se-ia que, sendo ela verdadeira, os detentores de capital-valor monetário, privilegiassem o investimento em capital variável relativamente ao capital constante, e não procurassem, ao contrário, substituir os trabalhadores, trabalho vivo, por meios de produção, por trabalho passado que não cria mais valia. Levando a que o desemprego seja um dos mais graves problemas sociais contemporâneos do “mundo desenvolvido”.
Ora, no processo histórico, o desenvolvimento das forças produtivas é incessante, cada descoberta dá origem a uma nova descoberta, cada invenção a uma nova invenção. O ramo que prolonga o braço, a pedra que chega onde não alcança a mão, as suas transformações em complexos instrumentos e meios de trabalho… em suma, os exemplos que deixámos no início desta “conversa”. A ruptura que leva de um modo de produção a outro modo de produção tem causas objectivas na crescente falta de correspondência entre esse desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais dominantes.
O novo modo de produção estimula o desenvolvimento das forças enquanto ele não contraria os interesses da classe dominante. Quando os contraria, a classe dominante procura, pelo menos, controlar ou travar esse desenvolvimento Para tanto podem servir direitos de propriedade industrial, registos de marcas e patentes e coisas dessas, chegando-se ao limite destruição de forças produtivas - até às guerras - quando a crise atinge níveis de grande gravidade.
Cito o Manifesto: “O permanente revolucionamento da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras”.

O capitalismo está marcado pelas suas contradições. Se, ao nível das relações de produção, no seu bojo criou o proletariado, também, ao nível das forças produtivas, vai criando as condições – e não as consegue inverter – para a baixa tendencial da taxa de lucro. Como transformou o desemprego em sua variável estratégica. Do que se escreverá a seguir.

quinta-feira, novembro 20, 2008

Materialismo histórico - 36

A lei da baixa tendencial da taxa de lucro exprime a tendência para a diminuição da taxa de lucro, resultante da evolução da composição orgânica do capital (coc).
O capital investido troca-se por capital constante (K), sob a forma de meios de produção e matérias primas, e por capital variável (V), a parte destinada à compra de horas de força de trabalho. Como o lucro (L) resulta da mais-valia (m-v) que o proprietário dos meios de produção retira do trabalho assalariado na produção (cada vez mais colectivo), L é proporcional a V, embora a taxa de lucro se calcule em função do capital total investido – L/(K + V).
Com a elevação da coc, a parte do capital variável no capital total – e poderia dizer-se a parcela do trabalho vivo na soma deste com o trabalho passado ou cristalizado nos meios de produção –, diminui, e a taxa de lucro também decresce, desde que se mantenha a m-v que se relaciona apenas com V. O que significa que a mesma quantidade de força de trabalho no mesmo tempo de emprego, põe em movimento uma massa sempre crescente de capital nas suas várias formas. Assim, uma mesma quantidade de capital variável fará funcionar uma sempre crescente quantidade de capital constante. Para ilustrar, dir-se-ia que, no limite ou caricatura, V apenas remunerará a tarefa de carregar em botões ou teclas que fariam o produzir K, que representa trabalho passado e cristalizado em instrumentos e objectos de trabalho.
Esta lei exprime o progresso do trabalho enquanto força produtiva por com menos trabalho, se criar a mesma quantidade de valores de uso (mercadorias), ou, com o mesmo trabalho se criar maior quantidade de valores de uso (mercadorias), ou os dois efeitos acumulados.
Em resumo, o desenvolvimento das forças produtivas, com expressão no acréscimo quantitativo e qualitativo dos meios de produção, faz aumentar K proporcionalmente a V, e implica necessariamente a tendência para a diminuição da taxa de lucro. Para o compensar, a classe dominante procura, permanentemente, um acréscimo da taxa de exploração, que só em condições excepcionalmente negativas da relação de forças sociais possibilita travar ou inverter, temporariamente, a lei tendencial, dados os diferentes ritmos de crescimento de K e de V.
Esta lei suscita, certamente, muitas dúvidas para que, surjam ou não, se procurará adiantar esclarecimentos à luz do materialismo histórico.

sexta-feira, novembro 14, 2008

Materialismo histórico - 35 (lucro)

Lucro é forma modificada da mais-valia. Na linguagem corrente, o lucro constitui o resultado tangível, material, de uma actividade económica qualquer. No capitalismo industrial, trata-se do acréscimo do capital investido durante um ciclo de reprodução desse capital. É a diferença entre D e D' após a passagem pela troca D-M e o processo produtivo de que resulta realizando-se M' como valor monetário através da troca por D'. Ou, em prática especulativa (o que não se deve confundir com distribuição), é a transformação de D a D' sem passar por (…P…), isto é, criação de riqueza.
O lucro depende da mais-valia. Primeiro, porque ele é, em si-mesmo, mais-valia, ou seja, a força de trabalho utilizada e não paga; depois, porque constitui um modo da existência concreta da mais-valia, e realiza-se, como capital-dinheiro, em várias formas: o lucro comercial, as rendas, os juros. Na prática especulativa, só se transfere mais-valia antes criada e apropriada.
Enquanto a mais-valia existe apenas na dimensão do capital variável, o lucro refere-se à totalidade do capital, pelo que é a mais-valia reportada ao conjunto do capital. Noutros termos (ou nos mesmos…), no processo produtivo, o capital total investido é a soma do capital constante (K), que são os edifícios, as máquinas os instrumentos, as matérias primas – os meios de produção, objectos e instrumentos de trabalho – mais o capital variável (V), a parte destinada à utilização da força de trabalho, e a mais-valia é parte de V e o lucro é parte de K + V.
Sendo epifenómeno da mais-valia, o lucro é elemento fundamental da mistificação do funcionamento do capitalismo:

  • porque, para o proprietário dos meios de produção, convertidos em capital-dinheiro que é investido para reprodução e acumulação, o lucro é criado pelo seu capital, e considera-o como fruto da sua actividade;
  • porque, para os economistas não-marxistas (mais contabilistas que economistas…), o lucro é o que resulta como benefício (ou prejuízo), como resíduo – o que se recebe menos o que se gasta –, compensa o risco assumido e está condicionado pela “conjuntura”.

Em ambos os casos o que se escamoteia é a exploração do homem pelo homem, uns possuidores dos meios de produção, outros apenas da sua força de trabalho.

Esta nota, necessariamente sumária (como todas, apenas pistas), é indispensável para se chegar à lei da baixa tendencial da taxa de lucro, o pé da mesa que falta.

domingo, novembro 09, 2008

Materialismo histórico - 34 (anotação a mais-valia)

Não vou responder ao que é provocação, petulância, má criação. Deixei de o fazer. De vez. O que não me impede de ler o que aparece publicado, e ai procurar “o trigo” das dúvidas. Aliás, acho curioso que se acusem marxistas de serem acríticos seguidores de uma cartilha, de usarem Marx como cego argumento de autoridade, e também de heterodoxos, quase de hereges por, a partir de Marx e da realidade que tanto se transforma, poderem, aqui e ali, sair do trilho que estaria certo no século XIX e deixou de o estar. Como o ilustra cabalmente o prefácio de Engels, de 1872 ao Manifesto de 1848.
Assim, vou aproveitar um comentário que me foi enviado, para (me) esclarecer e procurar esclarecer, ignorando quem o fez, como o fez e as intenções com que o fez. Até agradecendo algumas pistas apontadas e por onde entro e vou, fazendo o meu caminho.
Marx disse que as mercadorias, incluindo a força de trabalho, eram trocadas pelos seus valores. Em conformidade, a troca das mercadorias, de todas as mercadorias, era uma troca de equivalentes. Disse, também, que a mais-valia, o tal valor suplementar, era criada pela força de trabalho que criava mais valor do que o seu próprio valor, por fornecer mais trabalho do aquele que fora necessário para a sua produção.
Ora foi afirmado, num episódio anterior, que a troca da força de trabalho é uma troca desigual, ao contrário do que sucede com a troca das restantes mercadorias. E isso acontece porque a jornada de trabalho está dividida em duas partes, uma para o trabalhador (trabalho necessário), outra para o capitalista (trabalho excedente). Por isso, a troca das mercadorias é uma troca de equivalentes, como disse Marx, e é (também) uma troca desigual no que respeita à força de trabalho? Mas para o entender é preciso deixar a grilheta do sim OU não e já ter passado para o dialéctico sim OU/E não. Quer dizer, a troca de mercadorias é uma troca equitativa e a troca da força de trabalho é uma troca desigual? Assim se reconhece que, no capitalismo, a troca, em geral, é uma troca equitativa, e que a troca da força de trabalho, ao contrário da troca das restantes mercadorias, é - também - uma troca desigual!
Por a troca da força de trabalho ser uma troca desigual, é precisamente através dessa troca desigual que ocorre a criação e a apropriação de uma parte do valor criado pelos proprietários dos meios de produção que, por o serem, puderam trocar desigualmente a força de trabalho. O que se concretiza na esfera produtiva, quando – e se – se acrescenta valor. Na produção das mercadorias é gerado o seu valor; na troca das mercadorias, na relação social da troca, realiza-se a troca, através do dinheiro, pelo que o ciclo apenas termina na troca M’(mercadorias criadas na produção)-D’(dinheiro). Na troca, de facto, não é gerado qualquer valor, apenas é realizada, em capital dinheiro, a apropriação de valores criados na produção.
Há quem não tenha este entendimento. Julgo que estão errados, e esse erro, nalguns casos, tem a curiosidade de ir buscar o conceito de Marx de mais-valia e de o transplantar de (…P…), produção, para M´-D’, para a troca. Até porque a parte do valor apropriada é a que não é paga ao trabalhador na produção, isto é, a parte suplementar criada pela mercadoria que o trabalhador vende e que lhe não é paga. Nada acrescenta mais do que contém, dizia Lavoisier e outros – e o materialismo! –, mas a mercadoria força de trabalho, ao acrescentar valor, só recebe em troca uma parte do valor que acrescentou (por exemplo, com o trabalho vivo das costureiras que produzem camisas, e com o trabalho cristalizado nos meios de produção – fábrica, energia, máquinas de costura, pano, linhas, botões – propriedade de quem, por ser proprietário da forma de valor capital-dinheiro, também compra a força de trabalho)
O modo de produção capitalista caracteriza-se pela produção de mercadorias, e toda a produção é efectuada tendo por objectivo D-D’ (troca de dinheiro por mais dinheiro), objectivo que se mantém mesmo quando não haja produção e apenas transferência de mais-valia antes criada.
O valor das mercadorias só pode resultar do valor das outras mercadorias que foram usadas na sua produção. Marx, para continuar o que o David Ricardo deixara incompleto na sua teoria do valor, teve o génio de descobrir que o valor das mercadorias não era resultado do valor das que entravam na sua produção, mas de uma mercadoria especial, a força de trabalho, que único motor da dinâmica necessidades-utilização e transformação de recursos. E tudo se explica pela criação de valor na sua duplicidade valor de uso/valor de troca formando uma unidade dialéctica. O valor das mercadorias (M') é criado pelo uso de uma mercadoria que acrescenta valor (de uso/troca) ao valor das mercadorias que as integram (M).
A exploração existe, no capitalismo como noutros modos de produção que o antecederam. O que está e sempre esteve em causa é explicá-la. David Ricardo dissera que o trabalho era a medida do valor, Adam Smith que o trabalho cristalizado comprava trabalho vivo. Mas não explicaram como era gerada a mais-valia (e o seu epifenómeno, o lucro, que resulta da relação da mais-valia apropriada com o capital total investido, não fazendo qualquer distinção entre o constante e o variável). E foi este problema fulcral que Marx terá resolvido, com a descoberta da força de trabalho, que tem o “dom” de fornecer mais valor que aquele que é necessário para a sua própria produção.
Aliás a distinção entre trabalho e mercadoria-força de trabalho ainda não aparece em o Manifesto, o que só foi corrigido uma década depois, quando Marx aprofundava os seus estudos de economia (sem que se alterasse o documento original).
Há quem, de boa fé, não pense assim. A meu ver – e não afirmo estar a ver bem, mas estou convicto de que estou –, porque não penetraram em alguns mecanismos de raciocínio a que só se consegue chegar pela abordagem materialista dialéctica.
Parafraseando alguém, desculpem o lençol mas, como se sabe, isto dá pano para mangas. E mais mangas virão. Quando eu julgar oportuno e outras tarefas o consentirem.

sexta-feira, novembro 07, 2008

Materialismo histórico - 33 (mais-valia)

Mais-valia significa, de uma forma geral, suplemento ou excedente de valor. Aplica-se em várias circunstâncias. O reforço de uma equipa de futebol, um imposto sobre o que viu acrescido o seu valor fiscal.
Mas mais-valia é um conceito fulcral no marxismo-leninismo. Se, em materialismo histórico, se remontar à origem das trocas de coisas com valor de uso, estas trocas fazem-se entre equivalentes, isto é, tendo custado, em princípio, o mesmo dispêndio de horas de trabalho, ou de emprego da força de trabalho. Pelo que não é na circulação que se pode encontrar a origem da mais-valia. Mas, sim, na produção.
A jornada de trabalho, no sistema capitalista, divide-se em duas partes. Durante uma parte (t), o trabalhador que vende a sua força de trabalho contra um salário, produz, sob a forma de coisas, de mercadorias, um valor equivalente ao valor dessa força de trabalho (tempo de trabalho necessário); durante a outra parte da jornada de trabalho (t’), o trabalhador não tem retribuição (salarial ou outra), o que quer dizer que ele produz, também sob a forma de mercadorias, um valor suplementar (sobre-trabalho) de que se apropria o proprietário dos meios de produção, que não só comprou as horas de força de trabalho do trabalhadores do tempo de trabalho necessário como as outras mercadorias necessárias à produção, sem que destas lhe tenha advindo valor suplementar.
Reportando-nos ao anterior episódio, o proprietário dos meios de produção trocou capital dinheiro por capital constante (K) e por capital variável (V). Relativamente a K a troca, de uma forma geral, é equivalente; relativamente a V, apenas retribui com o necessário para que o trabalhador satisfaça as suas necessidades, isto é, apenas retribui o tempo de trabalho que lhe é necessário ao trabalhador para viver ou sobreviver, tedo esta expressão a ver com as necessidades do momento (histórico)!Assim, a mais-valia resulta da exploração da classe operária pela classe burguesa, enquanto proprietária dos meios de produção. O grau de exploração pode medir-se pelo sobre-trabalho (ou tempo de trabalho não pago) sobre o trabalho necessário (ou tempo de trabalho pago) (t’/t).
Dir-se-á que esta formulação é simplista e está ultrapassada porque o funcionamento da economia não tem - ou já não tem - esta simplicidade. É certo que o funcionamento da economia não tem – ou já não tem – esta simplicidade, mas também é certo que nada se pode compreender do funcionamento da economia, ou do que quer que seja, se não se for ao que é o seu cerne, ao que, ao tornar-se mais complexo o funcionamento, não deixou de ter as suas raízes, não passou a viver sem o seu alimento essencial, vital. O capitalismo não pode viver sem a exploração do homem pelo homem, através da criação e apropriação de mais-valia.

terça-feira, novembro 04, 2008

Materialismo histórico - 32 (composição orgânica do capital)

O capital é uma relação social mas é, também, um valor sob a forma monetária que é investido para se reproduzir. Enquanto tal, é um conjunto estruturado, que se compõe de duas partes.
Uma fracção do capital converte-se em meios de produção e compõe o capital constante (K), uma segunda fracção é dada em pagamento da força de trabalho, isto é, o capital variável (V). Esta divisão pode ser encarada no processo de valor (composição valor) ou, pela natureza das forças produtivas postas em movimento pelo capital no processo técnico (composição técnica) e, na ligação dos dois processos no ciclo de reprodução – D-M-(…P…)-M’-D’ – do capital, se exprime o conceito composição orgânica do capital (coc). Esta é representada pela fracção K/V (K sobre V).
Com o capitalismo, a coc não pára, de uma forma tendencial, de se elevar, em função dos ritmos de inovação tecnológica e de acumulação do capital. O numerador da fracção cresce mais que o seu denominador.
Esta noção é essencial para a compreensão dos mecanismos de acumulação capitalista.
Depois da crise de 1929-33 (e podia ir-se até 39 e à guerra), os economistas não-marxistas descobriram, à sua maneira, noções semelhantes à coc, como por exemplo a intensidade capitalista, mas sempre no pressuposto do capital apenas como uma coisa e não como uma relação social, e apenas elaborando noções técnicas de “capital fixo” e de “capital circulante”, não justapostas às de capital constante e de capital variável.
Na evolução do capitalismo, a elevação da composição orgânica do capital tem um duplo carácter contraditório. Por um lado, representa o rápido progresso das forças produtivas com crescente importância dos meios de produção, trabalho passado, cristalizado, relativamente à força de trabalho, trabalho vivo; por outro lado, reflecte a forma de acumulação do capital, com maior recurso ao capital constante, acompanhado de despedimentos, de desemprego e maior dificuldade na criação e apropriação de mais-valia.

quinta-feira, outubro 30, 2008

Materialismo histórico - 31

Não. Não acabou. Tem é havido muito pouca disponibilidade relativamente à disponibilidade que esta série me exige. Aproveito um trecho (adaptado) de uma intervenção pública para continuar:


“… a possibilidade de ocorrência de sobressaltos na circulação começa com a transformação de M-M (coisa trocada por coisa) em M-D-M (mercadoria trocada por mercadoria por intermédio de moeda, na designação genérica de dinheiro). Com o modo de produção capitalista, a circulação passa a ser D-M-D (dinheiro trocado por mercadorias para serem trocadas por dinheiro), e as crises começam a fazer parte do funcionamento do sistema pois a circulação exige que as mercadorias se troquem por dinheiro e a finalidade dela deixou de ser o de satisfazer as necessidades sociais, com M (coisas), mas o de realizar mais dinheiro, com D’ (mais dinheiro) no final da circulação económica e, para essa realização, não são suficientes as potencialidades de procura para consumo criadas na esfera produtiva.
Na viragem da década de 70 para a de 80 do século passado, tudo se complicou ainda mais com a ultrapassagem, no quadro da luta de classes, de um pico de crise (monetária com inconvertibilidade do dólar, do petróleo) pela via neo-liberal, monetarista, com expressão no maior papel da circulação D-D’ (dinheiro trocado por mais dinheiro, sem passar pela criação de bens, de riqueza). Chamemos-lhe especulação (bolsista e outras).
Mas esta foi uma forma, precária, instável e desestabilizadora, de ultrapassar uma contradição. Agravando-a. E, ao mesmo tempo, relevando a crise como inerente ao sistema, pois servindo para o capitalismo tentar superar, dentro dos seus parâmetros de classe, a contradição fulcral no seu funcionamento, cuja é a do desenvolvimento incessante e sem limites (até os que deveria ter!) das forças produtivas em oposição às dificuldades e aos limites da valorização do capital, enquanto valor sob forma monetária.
Daqui resulta a necessidade, para a sobrevivência do sistema, da destruição de forças produtivas excedentárias (maxime, de seres humanos), excedentárias para a reprodução do e acumulação do capital por não permitirem o processo de sua valorização como valor monetário.
Capital cada vez mais concentrado e menos valendo porque, mantendo-se a necessidade vital de criação de mais-valia e agudizando-se o desenvolvimento da contradição entre a capacidade de produção e a capacidade de consumo, esse capital monetário está cada vez mais empolado pela desmesurada circulação D-D’ (dinheiro --> dinheiro), mais acrescido desmesuradamente pelo crédito, também face às pulsões das necessidades e insuportáveis travões na evolução dos níveis salariais.
Por isso mesmo, no actual e gravíssimo pico de crise, a injecção de dinheiro pelo “moderno poder de Estado (que… lê-se no Manifesto) é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa”, é solução precária para a situação estrutural, sistémica, agravando-a a prazo, prazo cuja dimensão temporal é imprevisível - e só esta o é, na "leitura" do materialismo histórico.

terça-feira, outubro 21, 2008

Materialismo histórico - 30

Do ponto de vista da economia política, na leitura materialista histórica que (se) integra (n)o materialismo dialéctico, o valor não existe nas coisas em si, a não ser como potencialidade, como recurso a ser.
Um “fruto”, na árvore ou pousado na terra ou nesta enterrado, não “vale nada”. Só se o braço se estender para o colher, se o ser humano se curvar para o levantar ou arrancar do chão, é que passa a ter valor. Ou de uso, se consumido por quem o colheu, ou de troca se directamente trocado por outro “fruto” ou levado ao mercado.
E há, também, os recursos adquiridos. Os que, estando na natureza, recursos a ser, se lhes acrescentou valor pelo trabalho de colher, levantar, arrancar E transformar. Como um ramo a que, pelo trabalho, se limpou o que estaria a mais, se aguçou e afeiçoou a instrumento. E o ramo poderia ser a pedra, ou outra coisa, e outras coisas entre si ligadas pela força de trabalho que, de transformação em transformação, as tornaram instrumentos, ferramentas, máquinas, máquinas-ferramentas, aparelhos sofisticados em que dificilmente se descortina o que lhes está na origem, o trabalho.
Por isso se diz, nesta perspectiva, que o valor tem origem no trabalho. Porque este, com a sua força, foi acrescentando, às coisas, valor de uso, pelo uso que se lhe dá para satisfazer necessidades dos seres humanos, valor de troca, pelas trocas que possibilita.

As moedas, que começaram por ser sal, conchas, peles, são uma mercadoria especial. Equivalente geral, o seu valor consiste em exprimir o valor de todas as mercadorias, representando o trabalho social na sua forma mais geral e reflectindo as relações de produção entre os produtores das diferentes mercadorias.
O capitalismo, como sistema, modo de produção e formação social, foi-lhe dando outros usos. Além da forma-valor de equivalente geral, a de medida de valores, de meio de circulação e reserva, de entesouramento, de especulação. Dinheiro será o termo que designa quer todas as formas de moeda, logo todas as variedades concretas de equivalente geral, quer a própria substância da riqueza. A designação cobre, de facto, aspectos independentes: 1. a “mercadoria especial” criada e destinada 1.i) a facilitar as trocas, 1.ii) a ser colocada de reserva para trocas futuras (num “pé de meia” ou em guarda mútua ou de outros), 2. uma das formas do capital como valor, o capital-dinheiro, 3. a unidade de medida da riqueza.

Especular (na Bolsa e algures) consiste em passar de dinheiro a mais dinheiro

sem atravessar o ciclo produtivo, onde se cria a riqueza real e as mais-valias, correspondendo tão-só a transferência de real riqueza, que apenas muda de mãos. O que pode acontecer por i) haver quem fique com menos dinheiro, ii) aumento artificial de dinheiro*, da moeda que passou a ser chamada “fiduciária” (aqui se incluindo todos os “produtos” de crédito), que não é mais que promessa de “moeda legal”, ou seja, com base material, e que apenas existe porque há confiança em que essa “promessa” se concretize.

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* - o que, para os que não perdem dinheiro, tem o mesmo efeito pois o "mesmo dinheiro" passa a valer menos como equivalente uma vez que passa a ser necessário "mais dinheiro" para ser trocado pelas "mesmas coisas".

sexta-feira, outubro 17, 2008

Materialismo histórico - 29A (ou anexo)

Um escândalo, uma ilustração, um destaque
e uma leitura materialista dialéctico-histórica

Do muito que se vai lendo e ouv”e”ndo, retém-se o que se pode chamar escândalo e que é o facto, evidente (e escandaloso!), de se fazer uma verdadeira barragem ou conspiração do silêncio à volta de quem, colectiva ou individualmente, previu e preveniu sobre o caminho por onde ia a economia, ao financeirizar-se sem medida ou mesuras. Ignorando pela calada quem previu e preveniu, partidariamente, sindicalmente ou individualmente, e defende rupturas com o sistema como única alternativa que não a de desastre ou de avanço de contradição em contradição até à catástrofe, dando todas as palavras e imagens aos que, ou não previram, ou, tendo previsto, não preveniram, ou não previram e muito menos preveniram.

A ilustrar, uma coisa chamada “conselho dos 12” no semanário Expresso mantém a “selecção” com ex-ministros das finanças, directores de bancos e de grandes empresas e reputadíssimos técnicos de formação (digamos) conservadora, sem permitir que qualquer dos “tais” diga qualquer coisinha sobre o que previram e preveniram. E é curioso que esses 12, em perfeita consonância, em total unanimidade, “votariam” Obama, agora usado como esperança/ilusão para os tempos próximos, como é de uso ao ir buscar-se ao stock personagens que se apresentam como vindo mudar as coisas para que tudo fique na mesma, perdão, nos mesmos, sendo estes cada vez menos.

Destaque: Teodora Cardoso disse: “Aquilo a que estamos a assistir é antes o fim de um ciclo político longo assente na ideia da redução do peso do Estado e da perfeição dos mercados, que tinha surgido como reacção às ideias opostas. Agora importaria não esquecer essas experiências, confiar menos na ideologia (ainda que mascarada de ciência) e aceitar que o mundo global exige regras globais, a par com o respeito da diversidade, um grande programa político.”

Deixando para outra oportunidade a questão da ideologia “mascarada de ciência”, veja-se a afirmação de TC numa perspectiva dialéctica, de materialismo histórico:
1º tempo deste "ciclo" (tese) – grande peso do Estado e imperfeição dos mercados
2º tempo (antítese) – perfeição dos mercados e diminuição de peso ao Estado (muito particularmente das suas funções sociais e de regulação da economia)
Tempo futuro (para que tenha futuro… a caminho do socialismo) (síntese) – reforço e aperfeiçoamento do papel e da intervenção do Estado, integrando o funcionamento dos mercados, ao serviço do colectivo e do social.

terça-feira, outubro 14, 2008

Materialismo histórico - 29

Assim se chegou ao capitalismo, como modo de produção e como formação social. Não como fim da História. Simplesmente como o patamar em que nos calhou viver. E procurar perceber a vida que vivemos.

Mas… o que é o capital? O capital não é uma coisa nem uma relação entre coisas, o capital é uma relação social de produção que se estabelece em determinado momento histórico imposta por uma classe, a burguesia – detentora dos meios de produção –, a uma outra que ela própria faz nascer no seu bojo, o proletariado, e é, igualmente, um valor que permite a essa classe, em determinadas condições históricas, a apropriação de mais-valias por via da exploração do trabalho assalariado.
O seu aparecimento temporal coincide – e não por acaso – com a discussão do conceito de valor, que, nas suas várias formas de se exprimir, assenta na propriedade específica de um bem ou produto (a partir de certa altura, mercadoria) satisfazer determinadas necessidades sociais, isto é, de necessidades dos seres humanos no momento histórico que vivem.
Depois de ter sido atribuída a origem do valor à natureza, à “terra” de onde se colhiam os “frutos”, os clássicos da economia política (David Ricardo, sobretudo) deram um importante passo ao considerarem estar essa origem no trabalho e, com Marx, ao fazer a distinção entre trabalho abstracto e trabalho concreto, entre valor de uso e valor de troca, o estudo da teoria do valor e das suas formas foi desenvolvido. E tem de o continuar a ser. Por outros lados e ocasiões se procura fazê-lo.

Enquanto valor, o capital é um valor monetário que se investe com vista a reproduzir-se, na sua génese e essência através da exploração dos trabalhadores.

Este gráfico procura ilustrar como se reproduz o capital sob a forma monetária, tendo por base a criação de valor pelos trabalhadores na produção de mercadorias.
Com D (dinheiro) os capitalistas compram M (mercadorias: por exemplo, fios, botões, pano, máquinas de costura, energia – troca igual – e força de trabalho – troca desigual), em (…P…), processo produtivo, produz-se M’ (mercadorias resultantes de M, a que se somou valor: por exemplo, camisas) e que se troca por D’ (mais dinheiro).
A mais-valia apropriada resulta de o valor acrescentado pelas horas de uso de força de trabalho não terem sido todas trocadas por salário, sendo este insuficiente para que os trabalhadores, proprietários dessa mercadoria-força de trabalho, possam ter acesso ao produto que produziram, a que acrescentaram valor, mas apenas ao que lhes possibilita a satisfação de algumas das suas necessidades.

sexta-feira, outubro 10, 2008

Materialismo histórico - 28

De uma forma um pouco diferente, sob a inspiração do momento da escrita, ter-se-ia chegado, no último passo, ao capitalismo. Como modo de produção e como formação social.
Se no feudalismo a terra era a força produtiva nuclear, dela se procurando tirar tudo o que era possível com a ajuda dos meios adquiridos, dos instrumentos de trabalho que sobre ela, enquanto objecto de trabalho, agiam, no capitalismo a força produtiva nuclear passou a ser os instrumentos de trabalho.
E se no feudalismo a relação social fulcral era entre os senhores da terra e os servos da gleba, no capitalismo passou a ser entre os detentores dos meios de produção, sobretudo dos instrumentos de trabalho, e os trabalhadores, sobretudo os operários, os que operam com esses instrumentos.
Eram estas as linhas dinâmicas gerais e repete-se (até à exaustão, de quem lê e de quem escreve) a prevenção de que não se pretende estar a escrever História mas tão-só a que este caminho de que se procura dar notícia não seja mais que o de grandes etapas por que passou a Humanidade.
O arado de madeira dera lugar à charrua de ferro, a tracção por animais cada vez melhor domesticados e com melhores aparelhos passou a ter outros propulsores, como com a máquina a vapor, as ferramentas tornaram-se máquinas-ferramentas, criaram-se debulhadoras, empilhadoras, tudo o que continuava uma evolução imparável no aproveitamento da natureza e das transformações nela introduzidas pela força de trabalho para complementar a força de trabalho.
“A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário”. Quem o escreveu foi Marx e Engels no Manifesto, e são páginas que se devem ler como autênticas lições de objectividade. “Tudo o que era dos estados (ou ordens sociais – ständish) e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas.”

Há que não perturbar a escrita (e a leitura) com juízos de valor escorados em condições, princípios, valores enfim, de hoje e de aqui. Na ruptura com o feudalismo como modo e formação social predominantes, o capitalismo caracteriza-se por

  • grande aceleração do desenvolvimento das forças produtivas
  • trabalho assalariado
  • relação fundamental capital-trabalho, em que o primeiro termo significa a propriedade dos meios de produção e de troca por uma classe, e o segundo termo a força de trabalho tornada mercadoria
  • a lei fulcral da produção acrescida da mais-valia proveniente da exploração do trabalho assalariado.

Como é evidente, tudo isto tem de ser muito explicadinho, com a certeza de que a todo o momento há mudanças, quando não convulsões. De crises se falará…
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Foto (Vitral) de João Santiago

segunda-feira, outubro 06, 2008

Materialismo histórico - 27

Ao princípio, era o corpo. Como acontece com os animais (outros) que não se domesticam, que não são domesticáveis, que não são postos em cativeiro. Que assim sobrevivem. Apenas com o seu corpo, procurando mantê-lo vivo. E reproduzindo-se. Como acto natural, repetido, sazonal.
Ao princípio, era o corpo. O corpo seu, e o que o pudesse prolongar. Um ramo, uma pedra. O que o ajudasse a tornar a natureza, a que também o corpo pertencia, mais acessível à satisfação das suas necessidades. Fazendo, aos poucos, milénio a milénio, século a século, ano a ano, dia a dia, do que lhe prolongava o corpo, objecto e instrumento de trabalho.
Depois, corpos tornaram corpos de outros seu objecto e instrumento, puseram-nos a trabalhar para si como tinham feito com os ramos, as pedras e o que se lhes seguira e juntara. Dividiram-se: uns donos e outros escravos.
Mas era a terra que trabalhavam, o corpo, o que o prolongava, os corpos de outros, semelhantes, feitos coisas possuídas, instrumentos e objectos, meios de produção. Era a posse da terra que determinava, que dividia uns em senhores e outros em servos.
Os meios de produção foram ganhando crescente importância. Substituindo o corpo e o que o prolongava. Aparentemente, separando-se dos corpos de que eram complemento. Fazendo dos corpos a aparência de que, eles sim, eram o complemento dos meios de produção. Dos instrumentos e objectos. De trabalho.
O que importava possuir deixou de ser o outro, que de escravo em servo se tornou e de servo se liberta, já não é tanto a terra, que ela parece só produzir o que as máquinas a fazem produzir, substituindo a força dos braços, dos corpos escravos e dos corpos servos, dos animais domesticados, de tracção e de lavra. O que há que possuir são mesmo as máquinas e, assim, os produtos das máquinas que transformam as matérias primas daqui para ali transportadas por outras máquinas, por vias criadas pela força de trabalho e seus meios de complemento, ou talvez – dizem uns... – o seu inverso. Vias de caminhos abertos, de serventias a auto-estradas, de caminhos sobre ferro, de caminhos sobre as águas, de caminhos em voo como as aves, de caminhos por túneis feitos à imitação de toupeiras e outros.
Uns, apropriando-se do que a Humanidade foi conquistando gesto a gesto, passo a passo, conquistas que – é verdade! – fizerem crescer enormemente; outros, despojados de tudo menos da sua força de trabalho e da tarefa de concretizar as conquistas, as de antes, as de agora, as de sempre. Despojados de tudo, menos do regateado acesso, em troca de horas de utilização dessa força de trabalho, às necessidades que foram crescendo, e sendo diferentes, e sendo novas, como resultado do caminhar pelos caminhos feitos.
Ao princípio, era o corpo, como hoje é o corpo, desde os braços única força, e fio de vontade e alavanca e tudo, até à força dos dedos que carregam em botões, à força do conhecimento acumulado em dias, anos, séculos, milénios de aprendizagem, de ver, reter, transmitir aos outros.
E assim continuou o caminho dos seres humanos. E assim continuará.

sexta-feira, outubro 03, 2008

Materialismo histórico - 26

Nestes períodos históricos torna-se predominante a produção mercantil, isto é, a organização da economia social em que os produtos não se destinam ao consumo de quem os produz mas à troca. Assim surge o “reino” da mercadoria, um produto que, se produzido para satisfazer necessidades dos seres humanos, é produzido, não para ser consumido imediatamente – no sentido temporal e no sentido de ausência de agentes mediatos, intermediários –, mas para ser trocado.
Começa a haver circulação de mercadorias entre produtores e consumidores, que por sua vez são produtores de outras mercadorias de que os outros produtores são consumidores, e lugares de encontro, feiras e mercados.
Aqui chegados, resolveu-se ir à “fonte”, beber um pouco de água que saciasse um pouco a sede permanente.
Abriu-se O Capital (na pág. 101 do livro 1º, tomo 1) e ficou-se saboreando: «Na troca de produtos imediata[1], cada mercadoria é meio de troca imediata para o seu possuidor[2] e equivalente para o seu não-possuidor, mas apenas na medida em que é para ele um valor de uso. Assim, o artigo em troca não recebe ainda qualquer forma-valor independente do seu próprio valor de uso ou da necessidade individual daqueles que trocam. A necessidade dessa forma desenvolve-se com o número e a diversidade crescentes das mercadorias que entram no processo de troca. O problema surge simultaneamente com os meios para a sua solução. Um intercâmbio[3] em que os possuidores de mercadorias troquem e comparem os seus próprios artigos com diversos outros artigos nunca se verifica sem que diversas mercadorias de diversos possuidores sejam, no interior do seu intercâmbio, trocadas por uma e mesma terceira espécie de mercadorias e comparadas como valores. Essa terceira mercadoria, na medida em que se torna equivalente para diversas outras mercadorias, recebe imediatamente, se bem que dentro de limites estreitos, a forma de equivalente geral ou social. Esta forma de equivalente geral nasce e perece com o contacto social momentâneo que lhe deu vida. De modo alternado e passageiro advém a esta ou àquela mercadoria. Porém, com o desenvolvimento da troca de mercadorias, ela fixa-se exclusivamente a espécies particulares de mercadorias ou fixa-se na forma-dinheiro.» Gado, peles, sal, conchas, o próprio homem na situação de escravo. Mas, como Marx sublinha (e foge-se, agora, à tentação de recomeçar a transcrever), nunca a terra foi usada como essa terceira mercadoria, equivalente geral, pois essa “solução” apenas surgiu na sociedade burguesa desenvolvida, na parte final do século XVII, quando as relações sociais que definem o feudalismo já estavam na sua fase de inadequação ou de não-correspondência com o desenvolvimento das forças produtivas, para o que a circulação e o dinheiro, com novas funções, muito contribuíram.
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[1] Insisto nas duas formas de entender o vocábulo imediato, questão em que laboro há décadas e que, nesta transcrição, significativamente me assaltou. Adiante, e a propósito do saber como força produtiva - quando/se lá chegar - ,se verá a razão inicial desta (para mim) magna questão
[2] - Não se tratou (ainda?!) da questão da propriedade que teria começado com os escravo e passa para a terra e as mercadorias.
[3] - Relativamente ao episódio 24-anexo, os tradutores para edições avante! de O Capital, com a sua justamente reconhecida qualidade e exigência, encontraram as formas troca e intercâmbio para o que, nesse episódio, se designou por troca-troc e troca-échange, até porque o original não é francês...

terça-feira, setembro 30, 2008

Materialismo histórico - 25

As novas condições materiais, qualitativamente diferentes num processo dialéctico, impõem novas relações de produção, novos modos dos seres humanos se relacionarem e produzirem.
O fogo, a roda, o zero, o “atrelar ao peito”, a descoberta e a criação de novos materiais, a transformação de objectos de trabalho em instrumentos de trabalho, tudo converge num desenvolvimento acelerado das forças produtivas.
A terra aparece como a criadora de valor, isto é, com a capacidade e criar bens e produtos que, pelo uso, satisfazem necessidades e, depois, pela troca, são tornados acessíveis a essa satisfação, valor que não é senão “a mera gelatina do trabalho indiferenciado” (O Capital)[1]
Da escravatura passou-se ao feudalismo. Não como golpe de mágica, não como mudança em um momento e em todo o universo. Na dinâmica do processo histórico passou a ser predominante ou mais significativo o modo de produção e a formação social que se pode – e ao que penso acertadamente – definir como feudal.
Neste modo de produção e formação social, a base material assenta no trabalho sobre a terra, com os instrumentos que então, nesse momento (histórico, ou seja, séculos), apoiavam a força de trabalho. Nas relações sociais de produção as predominantes são as de quem possui a terra com quem a trabalha, entre os senhores (da terra, classe dominante) e os servos (camponeses ligados à gleba e obrigados a fornecer um sobretrabalho, desprovidos de meios de produção sobretudo de terra).
O servo da gleba, à diferença do escravo, não é uma mercadoria, está ligado à terra e só com ela pode ser vendido pelos senhores, enquanto tal direito (dos senhores de vender servos com a terra, dos servos de não serem vendidos como coisa à parte) estiver incluído nas relações de produção que se vão transformando, sem perderem a sua natureza de classe e no quadro da luta de classes.
Em esquema (que não pode ser redutor), o feudalismo engendrou, sob a autoridade superior de um monarca, duas categorias de privilegiados, o clero e a nobreza, e um “terceiro estado” agrupando estratos nascentes da burguesia, além do Povo, dos trabalhadores dos campos e das cidades directamente dependentes da monarquia, do clero e da nobreza.
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[1] - mas sobre esta questão fica tanto por dizer…

quinta-feira, setembro 25, 2008

Discurso sobre "materialismo histórico"

Minhas senhoras e meus senhores,
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Não vou, evidentemente, esgotar-me de esclarecimento em esclarecimento até ao esclarecimento final…
Esta série sobre “materialismo histórico” surgiu de uma proposta-desafio que veio ao encontro de um procedimento pessoal já velho de muitas décadas, e que muito gostaria de ir apurando: observar a realidade que vivo, e nela intervir, escorado numa perspectiva global - quer no espaço quer no tempo - sempre em revisita. Isto é, procurar descortinar os caboucos e as dinâmicas em cada facto observado e vivido, para que a intervenção possa ser de acordo com o que desejo e defendo. Errando aqui, corrigindo ali. Sempre com os outros. Os que já viveram e os que me são contemporâneos.
Se não “fechamos para congresso” – fórmula que muito me agrada porque a vida e a luta não param para que congressemos – não podemos deixar de fazer o vai-vem da História para confrontar o que estamos fazendo com os caminhos feitos e as dinâmicas detectáveis.
Nesta série, sinto-me a fazer, de novo, uma viagem sempre repetida e sempre nova. E não será ela que me impedirá de intervir, com o instrumental que, pela viagem, mais actualizado e adequado quero que esteja. Se o consigo ou não é outra questão...
Não abordo lucro, especulação, financeirização, transnacionalização, e etc. sem a permanente revisita dos mecanismos da exploração, da mais-valia, sem o “mercado mundial” do Manifesto e o imperialismo leniniano, sem o voltar à circulação e o regresso à origem dos circuitos e às (sem) razões das injecções monetárias, sem o capital a perder rosto, e como o vai perdendo enquanto ganha personagens-vedetas em ideologia doentiamente individualista. Sempre na busca de o que fazer em respostas colectivas.
Nesta viagem continuarei sem deixar de estar onde estou. E intervindo em cada gesto e minuto deste tempo.
Tenho dito e obrigado pela atenção.

quarta-feira, setembro 24, 2008

Adenda a materialismo histórico - 24

(De onde menos se espera, de um comentário que de antemão se sabe que vem com intenções duvidosas ou, sem sombra de dúvidas, para “chatear”, salta uma questão interessantísima. Cá por mim, rejubilo. Bem-vindo comentário!)

As questões da troca equivalente e da troca desigual desafiam para umas considerações de natureza linguística.
O que em português chamamos troca, em francês pode ser troc ou échange. Por exemplo, L’échange inégale, o original de Arghiri Emmanuel, que foi muito lido – e usado – no final dos anos 60/começo dos anos 70, foi editado em português com o título A troca desigual. E de que outra forma poderia ser?
Mas o facto é que são, em francês, conceitos diferentes que têm a mesma, e por isso perturbadora, designação em português.
No dicionário que me acompanha há décadas, e que por vezes parece ganhar actualidade, lá está, como “cabeça”, intróito aos respectivos artigos:
Echanges – (traduzo:) termo genérico para designar os movimentos das mercadorias, efectuando-se quer directamente quer por intermédio da moeda.
Troc – (traduzo:) forma de troca (échange) não monetária que consiste em trocar (échanger) directamente um objecto contra um outro.
A diferença (enorme!) está em que a troca-échange é genérica e a troca-troc é não-monetária e directa, objecto por objecto.
A partir da dúvida do comentário – fosse qual fosse a intenção do comentador –, fique claro que a troca a que me refiro neste passo (24) do “materialismo histórico” é a troca-troc, não-monetária e directamente de objecto contra objecto, com estes já a tomarem a forma conceptual de mercadoria.

Como se verá adiante, este "pormenor" tem a maior importância. Aliás, não é por acaso que aparece aquele sinal de igual ( = ) na ilustração gráfica, em que - talvez! - as setas devessem estar ao contrário.

terça-feira, setembro 23, 2008

Materialismo histórico - 24

Recomecemos, então. Aliás, nós não fazemos outra coisa que não seja recomeçar, como diria (mais ou menos) o sr. Jacques Brel, se tivesse falado português. Sim, porque “isto” do materialismo histórico pode ser contado e conversado de muitas maneiras, até a cantar.
Ora no episódio 20, ainda no esclavagismo, foi escrito que: “Ora, havendo excedentes, colhendo e produzindo os escravos mais do que seria necessário para que a sua sobrevivência fosse assegurada pelos proprietários (enquanto útil a estes), e possibilitando as novas forças produtivas que cada vez mais e maiores fossem sendo esses excedentes, a troca é a consequência de o trabalho de colheita e de produção ter deixado de colher e produzir para quem trabalha, para a satisfação das suas necessidades e dos seus proprietários (no modo de produção da escravatura), de cada vez mais o que uns colhem e produzem viesse sendo colhido e produzido para ser trocado pelo que outros colhem ou produzem.”
E é antes de se abordar a passagem ao patamar seguinte, ao feudalismo, que se antolha muito útil escrever sobre a troca, aliás, conversa já várias vezes prometida (ou ameaçada) e adiada.
Se uma comunidade de humanos - até porque integrou elementos, também humanos mas escravos de que se serve como instrumentos - recolhe da natureza e produz, transformando a natureza, para além do que necessita para satisfazer as suas necessidades próprias, de sobrevivência, de um determinado bem, e se, para satisfazer algumas outras das suas necessidades, começa a recorrer ao que outras comunidades recolhem e produzem para além do que as suas necessidades exigem, está a entrar-se abertamente no tempo (histórico) da troca e dão-se os primeiros passos no “reino da mercadoria”. O que tinha um valor de uso, porque satisfazia necessidades, passa a ter, também, valor de troca.
Aqui - “lugar 1” –, produziram-se x medidas de trigo tirado da terra, ali – “lugar 2” –, produziram-se y medidas de pano tirado de peles. Aqui – 1 –, sobraram, do uso próprio (ux1, ou seja, parte do trigo usado em 1), x-ux1 medidas de trigo e, ali – 2 –, sobraram do uso próprio (ou seja, parte do pano usado em 2), y-uy2 medidas de pano. Como em 1 se necessita de pano e em 2 se necessita de trigo, uma parte ou a totalidade de x-u1 troca-se com uma parte ou a totalidade de y-u2.

E quem quiser tentar perceber o que está para trás e o que vai vir, como é o caso deste escriba, tem de reter esta passagem, até porque a esta ilustração outras se seguirão (algumas já desenhadas, à espera de oportunidade para aparecerem) como sua sequência.

terça-feira, setembro 16, 2008

Materialismo histórico - 23

Retome-se o trilho.
Mas, antes de o fazermos no momento da História em que foi deixado, termine-se a reflexão suscitada pela pausa provocada por vários (e bons) motivos.Esta ilustração gráfica do materialismo histórico, com a comunidade primitiva, o esclavagismo, o feudalismo, o capitalismo como patamares de um caminho da Humanidade, exige um complemento. Além da intenção de, através do diferente tamanho dos “patamares”, dar a ideia de que há um evidente diferente dimensionamento temporal de cada modo de produção e formação social, deve acrescentar-se que a passagem a um patamar superior não representa a extinção imediata e completa dos anteriores. Em muitas zonas do mundo há situações ainda assimiláveis a comunidade primitiva, em muitas “cabeças”, ao nível da consciência social, há quem pense como se estivesse no esclavagismo, no feudalismo, no salazarismo (e a estes “estádios” desejasse voltar).
Por outro lado, as roturas, isto é, as passagens ao degrau acima, quando vistas de perto, ou melhor, quando vividas na contemporaneidade, não são momentos (históricos) simples, sem passos atrás (dois passos atrás, um passo em frente - Lenine).
Vendo à lupa a actualidade (séculos xx e xxi), poderia ser assim representado o que avançou, o que recuou e o que (é nossa convicção) se perspectiva em virtude da leitura das dinâmicas económico-político-sociais, em que o patamar mais acima (e não o último) é o do SOCIALISMO:
Então, até ao feudalismo e à troca… de que os “leitores” estarão à espera há alguns episódios.