sexta-feira, dezembro 12, 2008

O lido (mais ou menos...) sobre a DUDH

Não tinha a intenção de publicar esta minha intervenção. Parece-me, a juntar a outros "defeitos" que terá, demasiado longa para "postar". Mas... já que insistem, e algumas "qualidades" terá, aí vai. Até para ocupar espaço que estes últimos "dias loucos" me têm obrigado a deixar vazios. Quando há tanto para comentar...

Direitos Humanos
No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Porto, 26 de Novembro de 2008

Estamos a viver um tempo de efemérides. Talvez todos os tempos o sejam, Mas este é o nosso.
Aliás, e não é para me justificar, é difícil, no esgotamento da capacidade de "distanciação" (brechtiana) de cada um, encontrar um tempo que tanto apele a evocar efemérides. Também porque é um tempo evidente de crise. E se para se compreenderem as crises e perante elas nos posicionarmos, ou tão só para as sofrermos menos, ou para intervirmos cidadãmente, são indispensáveis as referências temporais, e estas simplificam-se por via das efemérides.
Até mesmo os que recusam ver a História como um fluir e se refugiam em concepções adinâmicas, que se iludem com “fins da História”, como se tudo o vivido pela Humanidade fosse escatológico e o capitalismo a derradeira forma dos homens se organizarem, e como se não fosse o imperialismo a sua fase superior e efémera, mesmo esses não estão a ser parcos em falar de datas e em reconhecer que há antecedentes históricos a que é preciso recorrer para ver como mudar as coisas, porque as coisas têm de mudar mesmo que seja com a intenção de que tudo fique na mesma ou que se adiem as rupturas…
"A longo prazo, todos estaremos mortos", terá dito Keynes e, como ele – talvez… faço-lhe a justiça de pôr a dúvida – muitos haverá que apenas se preocupam com o tempo da sua própria e pobre vida, mesmo que muito ricos sejam e o queiram ser sempre mais …
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Começámos – nós! – 2008 a assinalar os 190 anos do nascimento de Marx e os 160 anos do Manifesto. Antecipámo-nos nas comemorações de efemérides. À minha conta (e risco), assinalei os meus 50 anos de curso, de entrada para o Partido, de votar pela primeira vez (em Humberto Delgado), de algumas outras coisas.
Durante o ano, o evoluir da economia – aquilo a que, agora, se chama negócios –, a nível nacional, da União Europeia e mundial, veio fazer juntar-se a essas nossas comemorações gente estranha a elas, que o que mais desejaria era esquecer o que persistimos em lembrar e agora também snetm necessidade de o fazer. Embora, claro, com intenções diferentes das nossas.
No topo dos livros mais vendidos na Alemanha estará O Capital, de Karl Marx, na universidade portuguesa promovem-se seminários sobre o seu pensamento e a sua obra, que está excluída dos curricula, o que não acontecia nos tempos em que eu andava na universidade e que eram de fascismo em Portugal.
Acaba o ano a assinalar-se que, a 10 de Dezembro de 1948, 58 países membros das Nações Unidas votaram favoravelmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com sete abstenções.
Esta declaração foi adoptada na sequência da 2ª guerra mundial e da criação da Organização das Nações Unidas, em S. Francisco, nos Estados Unidos, numa verdadeira encruzilhada da caminhada da Humanidade.
A relação de forças sociais era então claramente favorável aos “aliados” que tinham vencido o nazi-fascismo e, para quem tem a perspectiva do materialismo histórico, da História como luta de classes, era-o, sobretudo, ao movimento operário, com a União Soviética como seu grande expoente e experiência real.
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Importará sublinhar que, antes da conferência de S. Francisco, já a que viria a ser uma das suas agências, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), adoptara, a 10 de Maio de 1944, a Declaração de Filadélfia, que passou a constituir um anexo à sua Constituição, de 1919.
Na verdade, e se de efemérides estamos falando, elas confirmam que o processo histórico se faz continuamente e com saltos. Como uma rampa em que, de quando em vez, aparecem degraus e patamares, antes de voltar a ser uma rampa. Nunca atapetada, nunca sempre ascendente, por vezes com tropeções e trambolhões. Sobretudo quando as forças dominantes querem evitar o próximo degrau a que serão obrigados e beneficiam de conivências espúrias e de traições para o evitarem. A prazo. Histórico.
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No final da 1ª guerra mundial, em 1919, fora criada a Sociedade das Nações, com afirmados objectivos idênticos aos que viriam a ser os das Nações Unidas, no sentido da criação de um novo contexto de relações internacionais e de preservação da paz, e também então fora criada a OIT, com a sua constituição (depois alterada em 1922 e 1934), tendo ficado como a única sequela da Sociedade das Nações, e vindo a integrar-se nas Nações Unidas logo que esta foi criada, como mais sua agência para a definição de normas internacionais – convenções e recomendações – laborais.
Parece-me de referir, não como lembrança, evidentemente, mas como sublinhado, que este final de guerra, e este ano de 1919, é contemporâneo da vitória da Revolução de Outubro, soviética, do final de 1917 e da sequente e consequente decisão de saída da guerra da Rússia, decreto nº 1 do novo governo, chefiado por Lenine, de 8 de Novembro de 1917.
A revolução proletária vitoriosa, a dar os primeiros passos em guerra civil e sitiada, cercada, não pode ser indiferente ao aparecimento de uma organização que se define como regulamentadora internacional na área do trabalho, definidora de normas laborais, como não o pode ser o facto de, 30 anos depois, ser essa mesma OIT a antecipar-se e, sem qualquer dúvida, a influenciar a criação das Nações Unidas e posterior Declaração dos Direitos Humanos, de que assinalamos os 60 anos.
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Mas permito-me recuar ainda mais umas boas décadas, curiosamente com os anos 8 e 9 da sua contagem a serem referência para efemérides não efémeras.
Passo – para a ele voltar – por 1848, no caminho para recuar até 1789. Nesse ano, “os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos”, e considerando mais coisas, levaram a dita Assembleia Nacional a reconhecer e a declarar, “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão”, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Foi num momento histórico, num dos degraus ou patamares da História. O “citoyen”, o cidadão, era o homem livre, não já o escravo, não já o servo da gleba, o homem – ainda não o ser humano… se é que, então, a mulher já era consentido ser considerada ser humano! –, o homem com direitos declarados, constituídos.
O que não é mesmo que dizer aplicados!
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Era a burguesia a tornar-se classe dominante nas relações sociais e não encontro melhor tradução para esse aparecimento do cidadão (e da declaração dos seus direitos) do que o que Marx e Engels escreveram no Manifesto, embora ainda não com o aprofundamento do estudo da economia política que lhes permitisse distinguir trabalho e força de trabalho.
Só duas frases:
· “A burguesia desempenhou na História um papel altamente revolucionário.”
· “A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.”
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Em 1789, escrevia-se: artigo. 1º: “os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.
Assim nasciam os cidadãos (e as cidadãs), num mundo de mercadorias todos proprietários de uma mercadoria, a sua força de trabalho, alguns com a propriedade, por apropriação, de outras mercadorias, dos meios de produção, que lhes possibilitava apropriarem-se da força de trabalho de outros, e sobre essa relação social construírem um modo de produção e uma formação social.
Em 1948, também o artigo 1º começava com a afirmação de que os seres humanos (as pessoas, os cidadãos e as cidadãs) nascem livres e iguais em direitos, acrescentando-se-lhe em dignidade. Dois passos em frente, 160 (menos um…) anos depois.
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Só mais duas frases do Manifesto – quando lhe pego tenho grande dificuldade em o largar… – relativa à propriedade que a Declaração de 1789 declara direito inviolável e sagrado, que a de 1948, no art. 17º, declara como um direito de que ninguém pode ser privado arbitrariamente.
· “Censurais-nos (…) por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.”
· “O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por essa apropriação, subjugar a si trabalho alheio.”

E a Declaração de 1948, ou quem tem poder para a invocar e aplicar, acrescenta-se o poder arbitrário de decidir o que é arbitrário ou não, e sempre será considerado arbitrário, em capitalismo, que se prive o privado de explorar os outros, por subjugar a si o trabalho alheio, que se privilegie o interesse e os direitos colectivos sobre o interesse e os direitos privados.
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Por isso mesmo, sublinho que a Declaração de Filadélfia reafirma no seu artigo 1º:
· “a) O trabalho não é uma mercadoria.”
E o artigo 3º que a Conferência (da OIT) reconhece a obrigação solene de a Organização Internacional do Trabalho secundar a execução, entre as diferentes nações do mundo, de programas próprios à realização:
· “a) do pleno emprego e da elevação do nível de vida.”
É verdade que, quem o quiser, encontra, nos artigos da Declaração de que se assinala a efeméride, dos artigos 22º ao 26º, a afirmação de que toda a pessoa tem direito à segurança social, ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho (“sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual”) e à protecção contra o desemprego, a uma remuneração equitativa e satisfatória, etc., etc., ao que configura o direito à saúde, o direito à educação (“gratuita, pelo menos no ensino elementar fundamental”).
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Tudo isto, que respeita aos direitos sociais, se pode ler, ou pode ser lido, na Declaração e, por isso, há que a saudar como afirmação de princípios e, decerto, resultado de luta. No entanto, todos os outros artigos são fundamentalmente políticos e parece que apenas estes contam, pois uma sua leitura fechada, de classe, subalterniza os direitos sociais, dá-os como inexistentes e faz, dos outros artigos, dos ditos políticos, um instrumento de classe, uma arma cujo uso não se modera nem se constrange perante critérios de verdade e de rigor, até etimológico.
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Passo a exemplificar com experiências próprias, próximas e históricas.
Na década de 70, procurava-se no Bureau Internacional do Trabalho da OIT, de forma tripartida – trabalhadores, empregadores e governos –, e com um “Programa Mundial do Emprego”, dar aplicação prática ao artigo da Declaração de Filadélfia (o artigo 3º) que diz, como já sublinhei, que a Conferência (da OIT) reconhecia a obrigação solene da que viria a ser agência das Nações Unidas secundar a execução, entre as diferentes nações do mundo, de programas próprios à realização, em primeiro lugar, do pleno emprego e da elevação do nível de vida.”
Com a chamada crise monetária (inconvertibilidade do dólar em 15 de Agosto de 1971) e do petróleo, e também com a maior participação de novos países ex-colónias nas instâncias internacionais, prevendo-se o acréscimo do desemprego, o BIT/OIT passou desse programa para o estudo e tentativa de implementação de uma estratégia, a que deu o nome de estratégia de emprego e necessidades essenciais, aprovada em Conferência Mundial do Emprego, em 1976, que se afirmava como concretizadora desse objectivo da Declaração de Filadélfia.
O primeiro País que poderia ter aplicado essa estratégia foi Portugal, pois o Plano de médio-prazo 1977-80, após a Constituição de 1976, sem prejuízo da transformação das relações sociais que estava no seu preâmbulo, poderia, em democracia avançada (ou a avançar), aplicar ou até testar, a estratégia através desse instrumento de política global.
Uma larga e diversificada equipa de técnicos escolhidos pelo BIT, com homólogos portugueses, durante meses de trabalho em Portugal elaborou um documento (ou melhor: um volumoso conjunto de documentos) em que se aplicava a estratégia, utilizando os nossos recursos, particularmente a qualificação e o emprego da nossa força de trabalho, satisfizesse as necessidades essenciais definidas politicamente como direitos. Esse plano, apresentado ao Governo pelo grupo de trabalho e pela Secretaria de Estado do Plano, ao 1º Governo Constitucional, foi por este aprovado mas, depois, ultrapassado por outros documentos como a Lei Barreto, mais conhecida pela contra-reforma agrária, não foi levado à Assembleia da República. Até hoje…
Os direitos sociais, plasmados em declarações solenes, foram preteridos pelo falso realismo de uma avaliação técnico-financeira da situação económica (bem mais saudável que a de hoje), apresentada por outras equipas, vindas do FMI e da finança internacional, a preparar-se para, com Thatcher e Reagan como protagonistas ou bonifrates, avançar pelo neo-liberalismo desbragado e fase crucial na luta de classes.
Durante a década de 80, na sequência dessa colaboração com a OIT, e depois de afastado das funções de Director Geral do Emprego, participei em várias missões de cooperação, em que confrontei esta duplicidade e incompatibilidade entre a passagem à prática de direitos sociais e a prática social do capitalismo, em trânsito para uma mudança na História, em que ao imperialismo, em nova configuração mundial, se passou a dar o nome de globalização.
A criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), a substituir o GATT, e a sua implementação em 1995, colocou, em toda a agudeza, a questão dos direitos humanos. Em nome do “free trade” (livre comércio) ignora-se o “fair trade” (comércio leal), sobretudo porque, enquanto nova agência das Nações Unidas, a OMC, não considera como sendo sequer de encarar como constrangimentos à prática comercial o “trabalho escravo”, o "trabalho infantil”, a discriminação salarial pelo sexo ou outra razão, a inexistência de negociação colectiva ou até proibição explícita ou encapotada de sindicalização, contrariando, por exemplo, o artigo 23º. 2. (“todos têm direito, sem discriminação, a salário igual por trabalho igual”) e ponto 4. (”toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses”) da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A ideologia do livre mercado prevalece sobre qualquer declaração solene de direitos sociais, ainda que incluída em declarações universais de direitos humanos, declarações e direitos que o sistema entretanto invoca para justificar bloqueios, ingerências, agressões, invasões e ocupações.
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Assinalar o 60º aniversário de um documento, particularmente tendo esta importância ética, este passado de luta e de conquista, não pode ficar-se pela exaltação da sua justeza, pela proposta de correcção e melhoria das suas formulações. Tem de ser, também, a avaliação do seu cumprimento e, sobretudo, a denúncia da sua aplicação perversa.
Assim o devemos assinalar. Lutando pela sua melhoria. E pela sua aplicação coerente com as grandiloquentes afirmações.
Lembrando que interpretar o Mundo, reflectir sobre o seu Estado e como o melhorar, é bom, mas a questão, o que é preciso, é lutar para transformar o Mundo, para que ele seja melhor, para que seja menos deshumano, para que venha a ser mais humano.

13 comentários:

Anónimo disse...

Muito interessante!

Ainda bem que as reivindicações para a publicação dessa intervenção foram atendidas. Tais intervenções podem ser longas, mas acho que assentam muito bem no blog.

Quanto à... parece poder-se concluir, que o postulado de direitos humanos escritos na declaração, é incompatível com o capitalismo.

Anónimo disse...

Poi como muito bem diz o Bruno, o problema maior é a incompatibilidade.
Obrigado por teres publicado
Abraço

Maria disse...

Muito bem, Sérgio.
Gostei de te ler.

Abraço

duarte disse...

eu novamente...pois bem ,não basta inventar direitos nos papeis mas sim aplicá-los!
e está agora à vista que este sistema em que vivemos é tudo menos humanizado...
passamos a ser meros instrumentos da globalização...a bem do grande capital.
Mas a produtividade tem limites e a ganancia não...resultado acabou-se a mama!
Transformemos o sonho em realidade...
Vive la révolution!
abraço de duartenovale e obrigado.

Fernando Samuel disse...

Magnífica, esta leitura da Declaração à luz do Manifesto.


Abraço.

cristal disse...

Ultimamente só tenho conseguido ler correndo, os teus posts. Este, exigiu mais tempo mas valeu bem a pena. A DUDH "vista" assim tem outra dimensão. Espero que esta leitura tenha ainda mais divulgação. Por tods os meios. BJ

samuel disse...

Algum dia a Humanidade há-de ser verdadeiramente digna do nome que tem...
Grande post!

Abraço

Justine disse...

Excelente, este teu texto!

Anónimo disse...

Obrigado por este excelente trabalho.

Anónimo disse...

Eu vennho-me com estas merdas. A serio.

Anónimo disse...

um raio de luz este trabalho... bem haja e viva nós!!

ó anónimo das 16:59...penso que eventualmente até poderia ser aqui exposto esse sentido, sendo que o mesmo obrigaria um nível de linguagem cuidada, poética talvez; não dessa forma

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Sérgio Ribeiro disse...

Tive de fazer o que nao gosto. Pciencia!
De muito longe, saudades e abracos para os amigos.