Não tinha a intenção de publicar esta minha intervenção. Parece-me, a juntar a outros "defeitos" que terá, demasiado longa para "postar". Mas... já que insistem, e algumas "qualidades" terá, aí vai. Até para ocupar espaço que estes últimos "dias loucos" me têm obrigado a deixar vazios. Quando há tanto para comentar...
Direitos Humanos
No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos
No 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Porto, 26 de Novembro de 2008
Estamos a viver um tempo de efemérides. Talvez todos os tempos o sejam, Mas este é o nosso.
Aliás, e não é para me justificar, é difícil, no esgotamento da capacidade de "distanciação" (brechtiana) de cada um, encontrar um tempo que tanto apele a evocar efemérides. Também porque é um tempo evidente de crise. E se para se compreenderem as crises e perante elas nos posicionarmos, ou tão só para as sofrermos menos, ou para intervirmos cidadãmente, são indispensáveis as referências temporais, e estas simplificam-se por via das efemérides.
Até mesmo os que recusam ver a História como um fluir e se refugiam em concepções adinâmicas, que se iludem com “fins da História”, como se tudo o vivido pela Humanidade fosse escatológico e o capitalismo a derradeira forma dos homens se organizarem, e como se não fosse o imperialismo a sua fase superior e efémera, mesmo esses não estão a ser parcos em falar de datas e em reconhecer que há antecedentes históricos a que é preciso recorrer para ver como mudar as coisas, porque as coisas têm de mudar mesmo que seja com a intenção de que tudo fique na mesma ou que se adiem as rupturas…
"A longo prazo, todos estaremos mortos", terá dito Keynes e, como ele – talvez… faço-lhe a justiça de pôr a dúvida – muitos haverá que apenas se preocupam com o tempo da sua própria e pobre vida, mesmo que muito ricos sejam e o queiram ser sempre mais …
.
Começámos – nós! – 2008 a assinalar os 190 anos do nascimento de Marx e os 160 anos do Manifesto. Antecipámo-nos nas comemorações de efemérides. À minha conta (e risco), assinalei os meus 50 anos de curso, de entrada para o Partido, de votar pela primeira vez (em Humberto Delgado), de algumas outras coisas.
Durante o ano, o evoluir da economia – aquilo a que, agora, se chama negócios –, a nível nacional, da União Europeia e mundial, veio fazer juntar-se a essas nossas comemorações gente estranha a elas, que o que mais desejaria era esquecer o que persistimos em lembrar e agora também snetm necessidade de o fazer. Embora, claro, com intenções diferentes das nossas.
No topo dos livros mais vendidos na Alemanha estará O Capital, de Karl Marx, na universidade portuguesa promovem-se seminários sobre o seu pensamento e a sua obra, que está excluída dos curricula, o que não acontecia nos tempos em que eu andava na universidade e que eram de fascismo em Portugal.
Acaba o ano a assinalar-se que, a 10 de Dezembro de 1948, 58 países membros das Nações Unidas votaram favoravelmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com sete abstenções.
Esta declaração foi adoptada na sequência da 2ª guerra mundial e da criação da Organização das Nações Unidas, em S. Francisco, nos Estados Unidos, numa verdadeira encruzilhada da caminhada da Humanidade.
A relação de forças sociais era então claramente favorável aos “aliados” que tinham vencido o nazi-fascismo e, para quem tem a perspectiva do materialismo histórico, da História como luta de classes, era-o, sobretudo, ao movimento operário, com a União Soviética como seu grande expoente e experiência real.
.
Importará sublinhar que, antes da conferência de S. Francisco, já a que viria a ser uma das suas agências, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), adoptara, a 10 de Maio de 1944, a Declaração de Filadélfia, que passou a constituir um anexo à sua Constituição, de 1919.
Na verdade, e se de efemérides estamos falando, elas confirmam que o processo histórico se faz continuamente e com saltos. Como uma rampa em que, de quando em vez, aparecem degraus e patamares, antes de voltar a ser uma rampa. Nunca atapetada, nunca sempre ascendente, por vezes com tropeções e trambolhões. Sobretudo quando as forças dominantes querem evitar o próximo degrau a que serão obrigados e beneficiam de conivências espúrias e de traições para o evitarem. A prazo. Histórico.
.
No final da 1ª guerra mundial, em 1919, fora criada a Sociedade das Nações, com afirmados objectivos idênticos aos que viriam a ser os das Nações Unidas, no sentido da criação de um novo contexto de relações internacionais e de preservação da paz, e também então fora criada a OIT, com a sua constituição (depois alterada em 1922 e 1934), tendo ficado como a única sequela da Sociedade das Nações, e vindo a integrar-se nas Nações Unidas logo que esta foi criada, como mais sua agência para a definição de normas internacionais – convenções e recomendações – laborais.
Parece-me de referir, não como lembrança, evidentemente, mas como sublinhado, que este final de guerra, e este ano de 1919, é contemporâneo da vitória da Revolução de Outubro, soviética, do final de 1917 e da sequente e consequente decisão de saída da guerra da Rússia, decreto nº 1 do novo governo, chefiado por Lenine, de 8 de Novembro de 1917.
A revolução proletária vitoriosa, a dar os primeiros passos em guerra civil e sitiada, cercada, não pode ser indiferente ao aparecimento de uma organização que se define como regulamentadora internacional na área do trabalho, definidora de normas laborais, como não o pode ser o facto de, 30 anos depois, ser essa mesma OIT a antecipar-se e, sem qualquer dúvida, a influenciar a criação das Nações Unidas e posterior Declaração dos Direitos Humanos, de que assinalamos os 60 anos.
.
Mas permito-me recuar ainda mais umas boas décadas, curiosamente com os anos 8 e 9 da sua contagem a serem referência para efemérides não efémeras.
Passo – para a ele voltar – por 1848, no caminho para recuar até 1789. Nesse ano, “os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos”, e considerando mais coisas, levaram a dita Assembleia Nacional a reconhecer e a declarar, “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão”, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Foi num momento histórico, num dos degraus ou patamares da História. O “citoyen”, o cidadão, era o homem livre, não já o escravo, não já o servo da gleba, o homem – ainda não o ser humano… se é que, então, a mulher já era consentido ser considerada ser humano! –, o homem com direitos declarados, constituídos.
O que não é mesmo que dizer aplicados!
.
Era a burguesia a tornar-se classe dominante nas relações sociais e não encontro melhor tradução para esse aparecimento do cidadão (e da declaração dos seus direitos) do que o que Marx e Engels escreveram no Manifesto, embora ainda não com o aprofundamento do estudo da economia política que lhes permitisse distinguir trabalho e força de trabalho.
Só duas frases:
· “A burguesia desempenhou na História um papel altamente revolucionário.”
· “A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.”
.
Em 1789, escrevia-se: artigo. 1º: “os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.
Assim nasciam os cidadãos (e as cidadãs), num mundo de mercadorias todos proprietários de uma mercadoria, a sua força de trabalho, alguns com a propriedade, por apropriação, de outras mercadorias, dos meios de produção, que lhes possibilitava apropriarem-se da força de trabalho de outros, e sobre essa relação social construírem um modo de produção e uma formação social.
Em 1948, também o artigo 1º começava com a afirmação de que os seres humanos (as pessoas, os cidadãos e as cidadãs) nascem livres e iguais em direitos, acrescentando-se-lhe em dignidade. Dois passos em frente, 160 (menos um…) anos depois.
.
Só mais duas frases do Manifesto – quando lhe pego tenho grande dificuldade em o largar… – relativa à propriedade que a Declaração de 1789 declara direito inviolável e sagrado, que a de 1948, no art. 17º, declara como um direito de que ninguém pode ser privado arbitrariamente.
· “Censurais-nos (…) por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.”
· “O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por essa apropriação, subjugar a si trabalho alheio.”
E a Declaração de 1948, ou quem tem poder para a invocar e aplicar, acrescenta-se o poder arbitrário de decidir o que é arbitrário ou não, e sempre será considerado arbitrário, em capitalismo, que se prive o privado de explorar os outros, por subjugar a si o trabalho alheio, que se privilegie o interesse e os direitos colectivos sobre o interesse e os direitos privados.
.
Por isso mesmo, sublinho que a Declaração de Filadélfia reafirma no seu artigo 1º:
· “a) O trabalho não é uma mercadoria.”
E o artigo 3º que a Conferência (da OIT) reconhece a obrigação solene de a Organização Internacional do Trabalho secundar a execução, entre as diferentes nações do mundo, de programas próprios à realização:
· “a) do pleno emprego e da elevação do nível de vida.”
É verdade que, quem o quiser, encontra, nos artigos da Declaração de que se assinala a efeméride, dos artigos 22º ao 26º, a afirmação de que toda a pessoa tem direito à segurança social, ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho (“sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual”) e à protecção contra o desemprego, a uma remuneração equitativa e satisfatória, etc., etc., ao que configura o direito à saúde, o direito à educação (“gratuita, pelo menos no ensino elementar fundamental”).
.
Tudo isto, que respeita aos direitos sociais, se pode ler, ou pode ser lido, na Declaração e, por isso, há que a saudar como afirmação de princípios e, decerto, resultado de luta. No entanto, todos os outros artigos são fundamentalmente políticos e parece que apenas estes contam, pois uma sua leitura fechada, de classe, subalterniza os direitos sociais, dá-os como inexistentes e faz, dos outros artigos, dos ditos políticos, um instrumento de classe, uma arma cujo uso não se modera nem se constrange perante critérios de verdade e de rigor, até etimológico.
.
Passo a exemplificar com experiências próprias, próximas e históricas.
Na década de 70, procurava-se no Bureau Internacional do Trabalho da OIT, de forma tripartida – trabalhadores, empregadores e governos –, e com um “Programa Mundial do Emprego”, dar aplicação prática ao artigo da Declaração de Filadélfia (o artigo 3º) que diz, como já sublinhei, que a Conferência (da OIT) reconhecia a obrigação solene da que viria a ser agência das Nações Unidas secundar a execução, entre as diferentes nações do mundo, de programas próprios à realização, em primeiro lugar, do pleno emprego e da elevação do nível de vida.”
Com a chamada crise monetária (inconvertibilidade do dólar em 15 de Agosto de 1971) e do petróleo, e também com a maior participação de novos países ex-colónias nas instâncias internacionais, prevendo-se o acréscimo do desemprego, o BIT/OIT passou desse programa para o estudo e tentativa de implementação de uma estratégia, a que deu o nome de estratégia de emprego e necessidades essenciais, aprovada em Conferência Mundial do Emprego, em 1976, que se afirmava como concretizadora desse objectivo da Declaração de Filadélfia.
O primeiro País que poderia ter aplicado essa estratégia foi Portugal, pois o Plano de médio-prazo 1977-80, após a Constituição de 1976, sem prejuízo da transformação das relações sociais que estava no seu preâmbulo, poderia, em democracia avançada (ou a avançar), aplicar ou até testar, a estratégia através desse instrumento de política global.
Uma larga e diversificada equipa de técnicos escolhidos pelo BIT, com homólogos portugueses, durante meses de trabalho em Portugal elaborou um documento (ou melhor: um volumoso conjunto de documentos) em que se aplicava a estratégia, utilizando os nossos recursos, particularmente a qualificação e o emprego da nossa força de trabalho, satisfizesse as necessidades essenciais definidas politicamente como direitos. Esse plano, apresentado ao Governo pelo grupo de trabalho e pela Secretaria de Estado do Plano, ao 1º Governo Constitucional, foi por este aprovado mas, depois, ultrapassado por outros documentos como a Lei Barreto, mais conhecida pela contra-reforma agrária, não foi levado à Assembleia da República. Até hoje…
Os direitos sociais, plasmados em declarações solenes, foram preteridos pelo falso realismo de uma avaliação técnico-financeira da situação económica (bem mais saudável que a de hoje), apresentada por outras equipas, vindas do FMI e da finança internacional, a preparar-se para, com Thatcher e Reagan como protagonistas ou bonifrates, avançar pelo neo-liberalismo desbragado e fase crucial na luta de classes.
Durante a década de 80, na sequência dessa colaboração com a OIT, e depois de afastado das funções de Director Geral do Emprego, participei em várias missões de cooperação, em que confrontei esta duplicidade e incompatibilidade entre a passagem à prática de direitos sociais e a prática social do capitalismo, em trânsito para uma mudança na História, em que ao imperialismo, em nova configuração mundial, se passou a dar o nome de globalização.
A criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), a substituir o GATT, e a sua implementação em 1995, colocou, em toda a agudeza, a questão dos direitos humanos. Em nome do “free trade” (livre comércio) ignora-se o “fair trade” (comércio leal), sobretudo porque, enquanto nova agência das Nações Unidas, a OMC, não considera como sendo sequer de encarar como constrangimentos à prática comercial o “trabalho escravo”, o "trabalho infantil”, a discriminação salarial pelo sexo ou outra razão, a inexistência de negociação colectiva ou até proibição explícita ou encapotada de sindicalização, contrariando, por exemplo, o artigo 23º. 2. (“todos têm direito, sem discriminação, a salário igual por trabalho igual”) e ponto 4. (”toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses”) da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A ideologia do livre mercado prevalece sobre qualquer declaração solene de direitos sociais, ainda que incluída em declarações universais de direitos humanos, declarações e direitos que o sistema entretanto invoca para justificar bloqueios, ingerências, agressões, invasões e ocupações.
.
Assinalar o 60º aniversário de um documento, particularmente tendo esta importância ética, este passado de luta e de conquista, não pode ficar-se pela exaltação da sua justeza, pela proposta de correcção e melhoria das suas formulações. Tem de ser, também, a avaliação do seu cumprimento e, sobretudo, a denúncia da sua aplicação perversa.
Assim o devemos assinalar. Lutando pela sua melhoria. E pela sua aplicação coerente com as grandiloquentes afirmações.
Lembrando que interpretar o Mundo, reflectir sobre o seu Estado e como o melhorar, é bom, mas a questão, o que é preciso, é lutar para transformar o Mundo, para que ele seja melhor, para que seja menos deshumano, para que venha a ser mais humano.
Aliás, e não é para me justificar, é difícil, no esgotamento da capacidade de "distanciação" (brechtiana) de cada um, encontrar um tempo que tanto apele a evocar efemérides. Também porque é um tempo evidente de crise. E se para se compreenderem as crises e perante elas nos posicionarmos, ou tão só para as sofrermos menos, ou para intervirmos cidadãmente, são indispensáveis as referências temporais, e estas simplificam-se por via das efemérides.
Até mesmo os que recusam ver a História como um fluir e se refugiam em concepções adinâmicas, que se iludem com “fins da História”, como se tudo o vivido pela Humanidade fosse escatológico e o capitalismo a derradeira forma dos homens se organizarem, e como se não fosse o imperialismo a sua fase superior e efémera, mesmo esses não estão a ser parcos em falar de datas e em reconhecer que há antecedentes históricos a que é preciso recorrer para ver como mudar as coisas, porque as coisas têm de mudar mesmo que seja com a intenção de que tudo fique na mesma ou que se adiem as rupturas…
"A longo prazo, todos estaremos mortos", terá dito Keynes e, como ele – talvez… faço-lhe a justiça de pôr a dúvida – muitos haverá que apenas se preocupam com o tempo da sua própria e pobre vida, mesmo que muito ricos sejam e o queiram ser sempre mais …
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Começámos – nós! – 2008 a assinalar os 190 anos do nascimento de Marx e os 160 anos do Manifesto. Antecipámo-nos nas comemorações de efemérides. À minha conta (e risco), assinalei os meus 50 anos de curso, de entrada para o Partido, de votar pela primeira vez (em Humberto Delgado), de algumas outras coisas.
Durante o ano, o evoluir da economia – aquilo a que, agora, se chama negócios –, a nível nacional, da União Europeia e mundial, veio fazer juntar-se a essas nossas comemorações gente estranha a elas, que o que mais desejaria era esquecer o que persistimos em lembrar e agora também snetm necessidade de o fazer. Embora, claro, com intenções diferentes das nossas.
No topo dos livros mais vendidos na Alemanha estará O Capital, de Karl Marx, na universidade portuguesa promovem-se seminários sobre o seu pensamento e a sua obra, que está excluída dos curricula, o que não acontecia nos tempos em que eu andava na universidade e que eram de fascismo em Portugal.
Acaba o ano a assinalar-se que, a 10 de Dezembro de 1948, 58 países membros das Nações Unidas votaram favoravelmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com sete abstenções.
Esta declaração foi adoptada na sequência da 2ª guerra mundial e da criação da Organização das Nações Unidas, em S. Francisco, nos Estados Unidos, numa verdadeira encruzilhada da caminhada da Humanidade.
A relação de forças sociais era então claramente favorável aos “aliados” que tinham vencido o nazi-fascismo e, para quem tem a perspectiva do materialismo histórico, da História como luta de classes, era-o, sobretudo, ao movimento operário, com a União Soviética como seu grande expoente e experiência real.
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Importará sublinhar que, antes da conferência de S. Francisco, já a que viria a ser uma das suas agências, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), adoptara, a 10 de Maio de 1944, a Declaração de Filadélfia, que passou a constituir um anexo à sua Constituição, de 1919.
Na verdade, e se de efemérides estamos falando, elas confirmam que o processo histórico se faz continuamente e com saltos. Como uma rampa em que, de quando em vez, aparecem degraus e patamares, antes de voltar a ser uma rampa. Nunca atapetada, nunca sempre ascendente, por vezes com tropeções e trambolhões. Sobretudo quando as forças dominantes querem evitar o próximo degrau a que serão obrigados e beneficiam de conivências espúrias e de traições para o evitarem. A prazo. Histórico.
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No final da 1ª guerra mundial, em 1919, fora criada a Sociedade das Nações, com afirmados objectivos idênticos aos que viriam a ser os das Nações Unidas, no sentido da criação de um novo contexto de relações internacionais e de preservação da paz, e também então fora criada a OIT, com a sua constituição (depois alterada em 1922 e 1934), tendo ficado como a única sequela da Sociedade das Nações, e vindo a integrar-se nas Nações Unidas logo que esta foi criada, como mais sua agência para a definição de normas internacionais – convenções e recomendações – laborais.
Parece-me de referir, não como lembrança, evidentemente, mas como sublinhado, que este final de guerra, e este ano de 1919, é contemporâneo da vitória da Revolução de Outubro, soviética, do final de 1917 e da sequente e consequente decisão de saída da guerra da Rússia, decreto nº 1 do novo governo, chefiado por Lenine, de 8 de Novembro de 1917.
A revolução proletária vitoriosa, a dar os primeiros passos em guerra civil e sitiada, cercada, não pode ser indiferente ao aparecimento de uma organização que se define como regulamentadora internacional na área do trabalho, definidora de normas laborais, como não o pode ser o facto de, 30 anos depois, ser essa mesma OIT a antecipar-se e, sem qualquer dúvida, a influenciar a criação das Nações Unidas e posterior Declaração dos Direitos Humanos, de que assinalamos os 60 anos.
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Mas permito-me recuar ainda mais umas boas décadas, curiosamente com os anos 8 e 9 da sua contagem a serem referência para efemérides não efémeras.
Passo – para a ele voltar – por 1848, no caminho para recuar até 1789. Nesse ano, “os representantes do povo francês, constituídos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos”, e considerando mais coisas, levaram a dita Assembleia Nacional a reconhecer e a declarar, “na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão”, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Foi num momento histórico, num dos degraus ou patamares da História. O “citoyen”, o cidadão, era o homem livre, não já o escravo, não já o servo da gleba, o homem – ainda não o ser humano… se é que, então, a mulher já era consentido ser considerada ser humano! –, o homem com direitos declarados, constituídos.
O que não é mesmo que dizer aplicados!
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Era a burguesia a tornar-se classe dominante nas relações sociais e não encontro melhor tradução para esse aparecimento do cidadão (e da declaração dos seus direitos) do que o que Marx e Engels escreveram no Manifesto, embora ainda não com o aprofundamento do estudo da economia política que lhes permitisse distinguir trabalho e força de trabalho.
Só duas frases:
· “A burguesia desempenhou na História um papel altamente revolucionário.”
· “A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.”
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Em 1789, escrevia-se: artigo. 1º: “os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.
Assim nasciam os cidadãos (e as cidadãs), num mundo de mercadorias todos proprietários de uma mercadoria, a sua força de trabalho, alguns com a propriedade, por apropriação, de outras mercadorias, dos meios de produção, que lhes possibilitava apropriarem-se da força de trabalho de outros, e sobre essa relação social construírem um modo de produção e uma formação social.
Em 1948, também o artigo 1º começava com a afirmação de que os seres humanos (as pessoas, os cidadãos e as cidadãs) nascem livres e iguais em direitos, acrescentando-se-lhe em dignidade. Dois passos em frente, 160 (menos um…) anos depois.
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Só mais duas frases do Manifesto – quando lhe pego tenho grande dificuldade em o largar… – relativa à propriedade que a Declaração de 1789 declara direito inviolável e sagrado, que a de 1948, no art. 17º, declara como um direito de que ninguém pode ser privado arbitrariamente.
· “Censurais-nos (…) por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.”
· “O comunismo não tira a ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira apenas o poder de, por essa apropriação, subjugar a si trabalho alheio.”
E a Declaração de 1948, ou quem tem poder para a invocar e aplicar, acrescenta-se o poder arbitrário de decidir o que é arbitrário ou não, e sempre será considerado arbitrário, em capitalismo, que se prive o privado de explorar os outros, por subjugar a si o trabalho alheio, que se privilegie o interesse e os direitos colectivos sobre o interesse e os direitos privados.
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Por isso mesmo, sublinho que a Declaração de Filadélfia reafirma no seu artigo 1º:
· “a) O trabalho não é uma mercadoria.”
E o artigo 3º que a Conferência (da OIT) reconhece a obrigação solene de a Organização Internacional do Trabalho secundar a execução, entre as diferentes nações do mundo, de programas próprios à realização:
· “a) do pleno emprego e da elevação do nível de vida.”
É verdade que, quem o quiser, encontra, nos artigos da Declaração de que se assinala a efeméride, dos artigos 22º ao 26º, a afirmação de que toda a pessoa tem direito à segurança social, ao trabalho, à livre escolha do emprego, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho (“sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual”) e à protecção contra o desemprego, a uma remuneração equitativa e satisfatória, etc., etc., ao que configura o direito à saúde, o direito à educação (“gratuita, pelo menos no ensino elementar fundamental”).
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Tudo isto, que respeita aos direitos sociais, se pode ler, ou pode ser lido, na Declaração e, por isso, há que a saudar como afirmação de princípios e, decerto, resultado de luta. No entanto, todos os outros artigos são fundamentalmente políticos e parece que apenas estes contam, pois uma sua leitura fechada, de classe, subalterniza os direitos sociais, dá-os como inexistentes e faz, dos outros artigos, dos ditos políticos, um instrumento de classe, uma arma cujo uso não se modera nem se constrange perante critérios de verdade e de rigor, até etimológico.
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Passo a exemplificar com experiências próprias, próximas e históricas.
Na década de 70, procurava-se no Bureau Internacional do Trabalho da OIT, de forma tripartida – trabalhadores, empregadores e governos –, e com um “Programa Mundial do Emprego”, dar aplicação prática ao artigo da Declaração de Filadélfia (o artigo 3º) que diz, como já sublinhei, que a Conferência (da OIT) reconhecia a obrigação solene da que viria a ser agência das Nações Unidas secundar a execução, entre as diferentes nações do mundo, de programas próprios à realização, em primeiro lugar, do pleno emprego e da elevação do nível de vida.”
Com a chamada crise monetária (inconvertibilidade do dólar em 15 de Agosto de 1971) e do petróleo, e também com a maior participação de novos países ex-colónias nas instâncias internacionais, prevendo-se o acréscimo do desemprego, o BIT/OIT passou desse programa para o estudo e tentativa de implementação de uma estratégia, a que deu o nome de estratégia de emprego e necessidades essenciais, aprovada em Conferência Mundial do Emprego, em 1976, que se afirmava como concretizadora desse objectivo da Declaração de Filadélfia.
O primeiro País que poderia ter aplicado essa estratégia foi Portugal, pois o Plano de médio-prazo 1977-80, após a Constituição de 1976, sem prejuízo da transformação das relações sociais que estava no seu preâmbulo, poderia, em democracia avançada (ou a avançar), aplicar ou até testar, a estratégia através desse instrumento de política global.
Uma larga e diversificada equipa de técnicos escolhidos pelo BIT, com homólogos portugueses, durante meses de trabalho em Portugal elaborou um documento (ou melhor: um volumoso conjunto de documentos) em que se aplicava a estratégia, utilizando os nossos recursos, particularmente a qualificação e o emprego da nossa força de trabalho, satisfizesse as necessidades essenciais definidas politicamente como direitos. Esse plano, apresentado ao Governo pelo grupo de trabalho e pela Secretaria de Estado do Plano, ao 1º Governo Constitucional, foi por este aprovado mas, depois, ultrapassado por outros documentos como a Lei Barreto, mais conhecida pela contra-reforma agrária, não foi levado à Assembleia da República. Até hoje…
Os direitos sociais, plasmados em declarações solenes, foram preteridos pelo falso realismo de uma avaliação técnico-financeira da situação económica (bem mais saudável que a de hoje), apresentada por outras equipas, vindas do FMI e da finança internacional, a preparar-se para, com Thatcher e Reagan como protagonistas ou bonifrates, avançar pelo neo-liberalismo desbragado e fase crucial na luta de classes.
Durante a década de 80, na sequência dessa colaboração com a OIT, e depois de afastado das funções de Director Geral do Emprego, participei em várias missões de cooperação, em que confrontei esta duplicidade e incompatibilidade entre a passagem à prática de direitos sociais e a prática social do capitalismo, em trânsito para uma mudança na História, em que ao imperialismo, em nova configuração mundial, se passou a dar o nome de globalização.
A criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), a substituir o GATT, e a sua implementação em 1995, colocou, em toda a agudeza, a questão dos direitos humanos. Em nome do “free trade” (livre comércio) ignora-se o “fair trade” (comércio leal), sobretudo porque, enquanto nova agência das Nações Unidas, a OMC, não considera como sendo sequer de encarar como constrangimentos à prática comercial o “trabalho escravo”, o "trabalho infantil”, a discriminação salarial pelo sexo ou outra razão, a inexistência de negociação colectiva ou até proibição explícita ou encapotada de sindicalização, contrariando, por exemplo, o artigo 23º. 2. (“todos têm direito, sem discriminação, a salário igual por trabalho igual”) e ponto 4. (”toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses”) da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A ideologia do livre mercado prevalece sobre qualquer declaração solene de direitos sociais, ainda que incluída em declarações universais de direitos humanos, declarações e direitos que o sistema entretanto invoca para justificar bloqueios, ingerências, agressões, invasões e ocupações.
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Assinalar o 60º aniversário de um documento, particularmente tendo esta importância ética, este passado de luta e de conquista, não pode ficar-se pela exaltação da sua justeza, pela proposta de correcção e melhoria das suas formulações. Tem de ser, também, a avaliação do seu cumprimento e, sobretudo, a denúncia da sua aplicação perversa.
Assim o devemos assinalar. Lutando pela sua melhoria. E pela sua aplicação coerente com as grandiloquentes afirmações.
Lembrando que interpretar o Mundo, reflectir sobre o seu Estado e como o melhorar, é bom, mas a questão, o que é preciso, é lutar para transformar o Mundo, para que ele seja melhor, para que seja menos deshumano, para que venha a ser mais humano.
13 comentários:
Muito interessante!
Ainda bem que as reivindicações para a publicação dessa intervenção foram atendidas. Tais intervenções podem ser longas, mas acho que assentam muito bem no blog.
Quanto à... parece poder-se concluir, que o postulado de direitos humanos escritos na declaração, é incompatível com o capitalismo.
Poi como muito bem diz o Bruno, o problema maior é a incompatibilidade.
Obrigado por teres publicado
Abraço
Muito bem, Sérgio.
Gostei de te ler.
Abraço
eu novamente...pois bem ,não basta inventar direitos nos papeis mas sim aplicá-los!
e está agora à vista que este sistema em que vivemos é tudo menos humanizado...
passamos a ser meros instrumentos da globalização...a bem do grande capital.
Mas a produtividade tem limites e a ganancia não...resultado acabou-se a mama!
Transformemos o sonho em realidade...
Vive la révolution!
abraço de duartenovale e obrigado.
Magnífica, esta leitura da Declaração à luz do Manifesto.
Abraço.
Ultimamente só tenho conseguido ler correndo, os teus posts. Este, exigiu mais tempo mas valeu bem a pena. A DUDH "vista" assim tem outra dimensão. Espero que esta leitura tenha ainda mais divulgação. Por tods os meios. BJ
Algum dia a Humanidade há-de ser verdadeiramente digna do nome que tem...
Grande post!
Abraço
Excelente, este teu texto!
Obrigado por este excelente trabalho.
Eu vennho-me com estas merdas. A serio.
um raio de luz este trabalho... bem haja e viva nós!!
ó anónimo das 16:59...penso que eventualmente até poderia ser aqui exposto esse sentido, sendo que o mesmo obrigaria um nível de linguagem cuidada, poética talvez; não dessa forma
Tive de fazer o que nao gosto. Pciencia!
De muito longe, saudades e abracos para os amigos.
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