- Edição Nº2146 - 15-1-2015
Vivamos
A exemplo do que sucede com algumas
canções, que sem razão aparente ou por um errático processo de associações de
ideias nos martelam na cabeça durante horas e mesmo dias a fio, esta semana
invadiu-me persistentemente a lembrança do poema de Reinaldo Ferreira –
Receita para fazer um herói: Tome-se um homem, / Feito de nada, como
nós, / E em tamanho natural. / Embeba-se-lhe a carne, / Lentamente, / Duma
certeza aguda, irracional, / Intensa como o ódio ou como a fome. / Depois,
perto do fim, / Agite-se um pendão / E toque-se um clarim. / Serve-se morto.
Mais intenso do que tudo o resto fica este
«Serve-se morto», seja lá onde for, que de mortos esteve a semana cheia
e de mortos se falou em todas as línguas. Mediatizados uns – a «nossa» dor dói
sempre mais do que a dor dos «outros» –, ignorados a maioria deles, os mortos
aí estão todos os dias a marcar o quotidiano, sem heroísmo que lhes valha mas
sempre a clamar por justiça.
Mortos por uma bala perdida, mortos com um
tiro à queima-roupa, mortos sem se saber porquê por um drone comandado a
milhares de quilómetros de distância, mortos de fome e de frio, mortos sem
assistência numa maca de hospital, mortos numa ambulância à procura da ajuda
que fica demasiado longe e chega demasiado tarde.
Mortos também de desespero pelo trabalho
roubado, pela casa pilhada, pela dignidade sonegada.
Mortos, enfim, no anonimato dos danos
colaterais de todos os crimes que ficam por contar... e por punir.
É feita de mortos esta história do mundo
globalizado pelo imperialismo, onde um punhado de hipócritas chora lágrimas de
crocodilo pelos que tombam enquanto com as mãos sujas de sangue lavram novas
sentenças de morte.
A encenação da pseudo manifestação de «dirigentes
mundiais» nas ruas de Paris – chefes de Estado e de governo, incluindo Passos
Coelho, naturalmente – que desfilaram durante alguns minutos e pousaram para a
fotografia separados por um imponente dispositivo policial dos milhões de
pessoas que saíram à rua em genuína manifestação de repúdio e indignação pelo
bárbaro ataque ao Charlie Hebdo, tresanda a morte. Morte matada fruto
das políticas que cada um por si e todos em conluio praticam no mundo
globalizado do capital – fomentando guerras contra estados soberanos,
instigando conflitos religiosos e étnicos, promovendo forças de extrema-direita,
fascistas e xenófobas, prosseguindo políticas que incrementam a exclusão social
e a exploração –, e morte anunciada de elementares direitos democráticos em
nome da «segurança».
Num sistema que globaliza perdas e danos e
privatiza lucros e benesses, até os mortos – acidentes de percurso – servem,
quando servem, para legitimar o ilegítimo. Vítimas e carrascos, depois de
mortos, tornam-se pratos pronto a servir para alimentar o monstro, insaciável
nos estertores da morte a que historicamente está condenado.
Cabe-nos a nós – os que querem transformar
o mundo – mudar o rumo desta história. Viver.
Anabela Fino
3 comentários:
Pouca sorte é morrer com último tiro da última batalha de uma grande guerra. Morrer no exato momento em que a guerra é dada como finda?
Vale a pena morrer como herói? Vale a pena morrer como mártir?
Heróis, mártires, atropelados, de cancro, ou sem assistência, de velhice, ou de parto... eu acho francamente que não vale a pena morrer. Pena é que, dada a inevitibalidade da morte, de alguma maneira tenhamos que morrer. Sendo assim que morramos, de uma forma ou de outra mas sempre de pé ainda que deitados.
Um vivo abraço
vivamos!
Um excelente artigo, que vale a pena ler e divulgar.
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