OPINIÃO
no PÚBLICO
26 de
Janeiro de 2019
A esquerda “identitária” diz adeus a Marx
A nação não
conta, a religião não conta, a classe social conta cada vez menos, mas a raça,
a cor, o sexo e o género contam muito, quase tudo.
Uma parte importante da nossa esquerda radical, a das “causas fracturantes”
e “identitárias”, mesmo quando se presume de marxista, abandonou há muito
aspectos essenciais da interpretação marxista do mundo, em particular a ideia
central de que é a relação de exploração entre o capital e o trabalho que
define a forma actual da luta de classes. Ou seja, que há inscrito no capitalismo
uma relação de exploração que só se elimina com a abolição da propriedade
privada pela revolução. Não é uma pequena coisa, é o núcleo central da sua
teoria, que Marx considerava ser “científica”.
Fê-lo, porque considerou que a teoria marxista estava ultrapassada e não
correspondia às características da sociedade contemporânea, em particular
àquilo a que se chama o mundo “pós-industrial”? Se fosse assim, poderia ter um
ponto, mas não foi assim. Foi por uma deriva que os clássicos do marxismo (e, by
the way, Cunhal e o PCP) classificariam com pouca ironia de
“pequeno-burguesa”, com uma forte componente intelectual, mediática, de moda,
do radical chic, que acompanha o progressivo abandono da sua
relação com a tradicional base social da esquerda no mundo operário e nos
sindicatos.
Resumindo
de forma simplificada: a nação não conta, a religião não conta, a origem social
não conta, a condição social não conta, a classe social conta cada vez menos,
mas a raça, a cor, o sexo e o género contam muito, quase tudo. Essa política de
“identidades” foi uma das responsáveis pelo desastre do Partido Democrático nos
EUA nas eleições presidenciais de 2016, quando Hillary Clinton falava para as
mulheres, os latinos, os LGBT, etc., etc., e Donald Trump falava para os
americanos. Nós sabemos que Trump falava para os brancos e para os ricos, mais
do que para os americanos e para os pobres, mas as palavras, o discurso e a
retórica têm em democracia muito valor, inclusive para acabar com ela. E Trump
nos EUA, e muitos dos mais reaccionários movimentos europeus, como a FN, ou os
movimentos anti-imigração alemães, assim como os populistas do Leste revelaram
capacidade de mobilizar essa base social de apoio que no passado era tida como
sendo da esquerda. É verdade que esta era uma afirmação muitas vezes
voluntarista, mas correspondia ao cânone do marxismo.
Em Portugal, quando se está num verdadeiro festival político de
identidades, neste caso a propósito do racismo, o efeito de ocultação do
discurso ideológico “anti-racista” sobre as questões de fundo esbate os
problemas sociais, a exclusão, a marginalização. Sem dúvida, a cor da pele
conta e agrava, mas as fontes do conflito são sociais antes de serem
“identitárias”. Um negro rico, ou académico, ou yuppie, ou consultor
financeiro é cada vez menos negro e um negro pobre é cada vez mais negro. Todos
têm de lidar com a cor da pele, como os brancos em África, e o racismo é
inaceitável, mas só a melhoria da condição social é eficaz para o combater.
E outro efeito das políticas “identitárias” é esconder também os fenómenos
associados de deriva criminal, a pequena criminalidade, a receptação, o tráfico
de droga, a imitação “identitária” dos gangs dos filmes
televisivos, que tem que ver com a “resistência” à polícia. Acaso pensam que a
defesa dos bairros, brancos e negros, como “território” em que a polícia não
pode entrar é apenas um resultado do ódio à “bófia”? O resultado é que parece
que falar disto é ser racista ou defensor da violência policial, ou seja, uma
denegação da realidade, coisa que se paga sempre caro.
A política de “identidades” e das “causas fracturantes” foi um processo que
facilitou a passagem de grupos revolucionários a reformistas. Para o Bloco de
Esquerda não está mal, porque isso facilita a aproximação com o PS, cuja ala
esquerda pensa o mesmo. O Bloco rende-se àquilo a que Rosa Luxemburgo chamava
“movimento” em detrimento dos “fins”, que considerava a essência do reformismo,
ou seja, o abandono da revolução, neste caso a favor de uma miríade de
“causas”. Facilita igualmente a integração de grupos anti-racistas, feministas,
LGBT, de defesa dos animais, antiespecistas, muitos dos quais são fortemente
subsidiados por dinheiros públicos. Eles podem colocar o rótulo de
anticapitalista em tudo isto, mas é pouco mais do que um rótulo.
Sendo a política de “identidades” uma forma de reformismo, daí não vem nenhum
mal ao mundo. Porém, tem um efeito perverso cujos custos a esquerda ainda não
percebeu que está a e vai pagar: é fazer espelho com a outra política de
“causas” da direita radical, os movimentos antiaborto e anti-imigrantes, a
islamofobia a favor da “civilização cristã”, a mulher dona de casa, o
anti-intelectualismo, a defesa dos valores “familiares”, o lobby pró-armas
nos EUA, ou “as meninas são de cor-de-rosa e os rapazes de azul” dos
Bolsonaros, os pró-tourada, os homofóbicos, etc. Acantonados nas suas “causas”,
cada uma reforça a outra, o SOS Racismo dá forças ao PNR e vice-versa, e fora
do “meio” destes confrontos, a nova direita “alt-right” ganha sempre
mais força, porque é capaz de transformar isto tudo num discurso global através
do populismo e a esquerda não.
José
Pacheco Pereira
5 comentários:
Estou a pensar, estou a pensar. Não tenho eu feito outra coisa...
Mas, enquanto não penso um pouco mais fundo, ocorre-me que uma escritora, mulher, velha, fisicamente diminuída e pobre, será cada vez menos escritora e cada vez mais mulher, velha e pobre. Cada vez mais estorvo e cada vez menos pessoa, para a maioria.
Tento estar cada vez mais atenta aos rótulos anticapitalistas de certos movimentos, mas
como concordo com o inegável facto de um negro RICO ser cada vez menos negro, continuo a valorizar muitíssimo a relação de exploração entre o capital e o trabalho.
O PP faz aqui uma lúcida reflexão das diferenças entre a "beautiful" esquerda e a esquerda ideológica tradicional.
Só a questão das touradas está a mais ...
Sempre houve e haverá os fascistas menos e mais radicais!
Muito confuso.Li duas vezes e continuei a reflectir que o texto está muito confuso.Marx estudou o movimento e desenvolvimento do capitalismo ,desde o príncipio de uma economia rudimentar,até à sua forma superior :o capitalismo.E a História tem comprovado a justeza da sua doutrina.O resto ,são prelúdios...Bjo.
Considerei de divulgar o texto de JPP porque... pensa (e faz pensar) a partir de uma perspectiva que se quer fundada no marxismo. E esta, para ser marxista, não pode senão ser dialéctica, não se pode fechar na dicotomia sim ou não, bons e maus. O sim também é não, os hoje "bons", amanhã podem ser "maus", os ontem "maus", hoje podem ser "bons" (e a avaliação depende de critérios...).
Ou melhor (?) ainda: nada é definitivamente sim ou não, nem ninguém é só bondade como ninguém é só maldade. Por isso, como marxista que me quero, recuso-me a julgar alguém pelo que fez ou pelo que disse, e não pelo que diz e pelo que faça.
Como postula o povo "quando nos batem à porta não se pergunta quem foi mas quem é"!
"Isto" não tem nenhum endereço!, é uma reflexão a propósito. Com a intenção, que quero constante, de tudo avaliar pelo critério do que (e de quem) se serve na luta de classes. No momento em que "tudo" acontece.
Obrigado a todos os que leram, e em particular aos que comentaram.
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