terça-feira, novembro 26, 2019

Bolivia (continuação) - os amanhãs de pesadelo

  "Informar não é uma liberdade para a imprensa, mas um dever"






25 novembre 2019
Bolivie, o regresso da besta imunda
– um golpe de Estado escondido pela comunicação social
Maïté PINERO

Nunca, na sua carreira de jornalista, Tom Phillips tinha vivido algo parecido. Chegado a El Alto, perto de La Paz, no dia seguinte ao massacre na refinaria de Senkata, o correspondente do Guardian na América latina foi recebido com aplausos por uma guarda de honra. A imagem circula nas redes sociais. Prega ao pelourinho os grandes meios de comunicação social.

Dois dias depois do golpe de Estado, o novo ministro do Governo, Arturo Murillo, e a sua ministra das Communicações anunciavam que os jornalistas “sediciosos” seriam presos, com o nome publicado. Nesse mesmo dia, todos os jornalistas e técnicos argentinos foram agredidos pelos comités cívicos de Santa Cruz, as milícias fascistes. Foram obrigados a juntar-se e, depois, a refugiar-se num hotel, antes de serem recenseados pelas suas embaixadas.
Telesur pôde emitir ainda alguns dias, com repórteres no terreno (Marco Teruggi et Willy Morales) multiplicando precauções, falando de “governo de facto”, enquanto nos estúdios o apresentador evocava claramente o “golpe de Estado”. O canal informou sobre os massacres em Cochabamba e depois em Senkata. Após as últimas reportagens, no hospital de El Alto, onde sse ouvem gritos de dor, onde se vêm cadáveres, onde um médico desesperado, Aiver Guarana (depois preso), chora frente à câmara, as transmissões foram cortadas.
Em Senkata, em directo da mortandade, um jornalista latino-americano lamentava-se : Somos dois… onde está a imprensa internacional? Filmou o massacre. Depois, escondeu-se, misturou-se com  população de El Alto.
Apareceram novos “jornalistas”. Trazem máscaras e capacetes com o distintivo estampado “prensa”. Num video, agridem um estudante de cinema e documentário, que lhes diz: eu faço o trabalho que a imprensa não faz! Os pretensos « jornalistas » apontaram-no aos polícias, que logo o prendem.
Os meios franceses e europeus estão ausentes. Uma cortina de ferro mediática abateu-se sobre o país. A Federação internacional dos jornalistas, o SNJ e o SNJ-CGT denunciaram o golpe de Estado. Silêncio!
Com excepção do L’Humanité, a imprensa censura a tragédia: nem uma palavra sobre o autarca indígena pintado de tinta vermelha e cabelo rapado, nem uma palavra sobre os camponeses levados para a beira de uma lagoa, forçados a ajoelharem-se e depois levados para destino desconhecido, nem uma palavra sobre incêndios e saques das casas de Evo Morales, de sua irmã, de representantes eleitos e líderes do Movimento ao Socialismo (MAS), o partido político do presidente, nem uma palavra (ou quase) sobre a repressão aos manifestantes que, sob fogo, deixaram quinta-feira El Alto com seus mártires caixões abandonados nas ruas.
Os brancos ricos dão rédea livre ao racismo e têm sede de vingança: não podiam suportar que um indígena, um aimará, nacionalizasse a riqueza do país para criar escolas e universidades, tornar a saúde um direito, conceder reformas, reduzir para metade a pobreza, o desemprego e o analfabetismo. E tenha dado, à maioria do país, os "primeiros povos", o seu lugar na sociedade e no poder. Começando com sua bandeira, a Wiphala, cujo nome significa a vitória que acena, que era a segunda bandeira do país. Nunca visto!
Franceses e europeus, vocês não saberão nada da tragédia. Editorialistas e "especialistas" patenteados ficarão à margem do que aconteceu e acontece. Na melhor das hipóteses, haverá um debate: é um golpe de estado ou é algodão doce (“barbe à pápá”)?
A verdade, teimosa e sangrenta, faz o seu caminho. O golpe seguiu o cenário de Golpe Blando (Lawfare), desenvolvido pelo teórico da CIA Gene Sharp.
A verdade? As acusações de fraude eleitoral são uma montagem da ala direita e da CIA.
A verdade? A Organização dos Estados Americanos (OEA), o "Escritório Colonial" de propriedade de 60% dos Estados Unidos, foi o gatilho do golpe. Dois centros de pesquisa, incluindo o Centro de Pesquisa Económica e Política de Washington, criticaram o relatório da OEA, dizendo que mesmo que os votos em discussão fossem para a lista da oposição Evo Morales teria ganho.
A censura prolonga o envolvimento da União Europeia e da França. O Parlamento Europeu recusou-se a incluir o termo "golpe de Estado" na agenda do debate sobre a situação na Bolívia. Federica Mogherini, chefe de política externa da UE, reconheceu o golpe por evitar o "vazio do poder".
Desde então, o representante da UE, Leon de la Torre, está ao lado da ditadura. 
André Chassaigne, deputado comunista, enviou uma pergunta escrita ao governo, perguntando se as intervenções da UE e da França pretendem "participar e ajudar a restaurar o estado de direito ou pressionar os eleitos da maioria para que se submetam". Pede que " se informe imediatamente a representação nacional sobre o significado real, o conteúdo e as medidas tomadas pela França e pela União Européia na Bolívia".
Quanto à administração Trump, organizadora dos bastidores do golpe, deixa os seus cúmplices fazerem o trabalho sujo.
Denegridos e ameaçados, os deputados e senadores do MAS, maioria de 70% na Assembléia Plurinacional, votaram em novas eleições que a UE, comprometida no reconhecimento do golpe, estava com pressa de anunciar. O que quer dizer quando o exército invade o campo para semear terror? Que prisões e desaparecimentos se multiplicam?
A intervenção da porta-voz da Assembléia MAS, Sonia Brito, que reflecte veemência, foi censurada no Twitter. No Senado, um seu colega, em declaração ambígua e precipitada, disse: "Há relatos na imprensa de que o grupo radical fez um acordo com a oposição. Isto está errado. Este não é um pacto ... Não vou contradizer a cobertura do governo de transição. (...) não acho é que um governo de transição possa expulsar cidadãos, cause 32 mortos, mais de 780 feridos, prenda mais de 1.000 pessoas, acuse jornalistas de sedição."
Os golpistas ameaçaram promulgar, na segunda-feira, um decreto para anunciar um outro escrutínio se o Parlamento não aceitar as suas condições.
Quais condições? Basta ver o gabinete de marionetes fazendo o sinal do WP (White Power) da "supremacia branca" durante a execução de "juramento", para entender o seu objectivo: instalar permanentemente um regime racista e fascista.
"Se deixarmos acontecer o que está acontecendo na Bolívia, isso acontecerá em todos os lugares", disse José Luis Zapatero, ex-presidente do governo de Espanha. O aviso lembra os antifascistas, artistas e intelectuais da década de 1930. O véu negro da comunicação, o silêncio da elite, o papel da UE estão a preparar-nos para amanhãs de pesadelo, porque é também de nós que se trata. A besta imunda está de volta. A história ensina que é impossível domá-la.

Maïté PINERO
Ex-correspondente do L’Humanité em Havana
(tradução S.R.)

1 comentário:

Olinda disse...

Óptima informação e melhor alerta.Obrigada pela tradução.Nunca é demais atarmos os nós todos da elucidação.O que se está a passar é muito grave.Bjo