quarta-feira, março 03, 2010

Reflexões... lentas - as palavras como convenções e conceitos

As palavras – cada palavra – são convenções, e são conceitos.
Mesa é uma palavra que designa isto em que coloco o dedo, e o computador, e o prato, e o copo, e o garfo, e a comida. E o dedo, o computador, o prato, o copo, o garfo, a comida são o que se convencionou assim chamar. Em português. Porque também são, convencionalmente - em palavras - table, doigt, ordinateur, vaisselle, verre, fourchette, nourriture. Ou table, finger, computer, dish, glass, fork, food. Ou… Ou... até em caracteres que este teclado não tem.
E as palavras são, também, conceitos.

Democracia, para uns, é vários partidos, votações periódicas, primado para a vertente representativa, liberdade de expressão (mesmo que o poder económico a condicione);
para outros, democracia é soberania no povo, ausência de exploração e de discriminações, valorização da vertente participativa, liberdades e direitos sociais, enquanto se vive no «reino da necessidade» e se constrói – ao longo de séculos e milénios – o «reino da liberdade», isto é, onde serão susceptíveis de ser satisfeitas as necessidades emergentes e quando se chegou à consciência da necessidade.
Palavras? Sim, palavras!
Para Marx (ou para o marxismo, o que não é o mesmo mas é igual), trabalho, como palavra convencionada e conceito, é actividade racional do ser humano. Exclusivamente.

Nalguns trechos de tanto escrito de Marx, isso pode não ficar totalmente claro pois dele se lê, por exemplo, que há «primeiras formas de trabalho, animalescamente instintivas», enquanto trabalho... que ainda não é e de que ele, Marx/marxista, não vai tratar (em O Capital).
A aparente ambiguidade, ou até contradição, por se designar por «primeiras formas de trabalho» o que não se considera como trabalho por este, como conceito marxista, ter de ser racional («No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que, no começo do mesmo, já na ideia do operário, portanto, já idealmente, se achava presente»!), pode resolver-se com o uso de uma outra palavra como actividade («formas de actividade, animalescamente instintivas»).
Por outro lado, neste caso não encontro fragilidades no pensamento de Marx, não porque sectariamente as recuse, mas porque é sempre – e aqui se comprova, como em tudo – um pensamento em construção*. E continua a sê-lo. Usando as palavras, procurando as que exprimam esse pensamento. Embora não sempre com a mesma inabalável consistência, como um todo coerente. Até convencional, etimológico.

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* - como o operário...

11 comentários:

Maria disse...

Só um EXCELENTE professor pode explicar assim, tão clarinho, o que depois da leitura nos parece óbvio...
Obrigada, Sérgio!

Um beijo.

Anónimo disse...

"O escravo não vende a sua força de trabalho ao possuidor de escravos, do mesmo modo que o "BOI" não vende o produto de "SEU TRABALHO" (sublinhados meus) ao camponês.
Marx, Trabalho assalariado e capital.

E ainda a propósito do racional e não racional, sugiro a leitura da obra de Engels A Dialéctica da Natureza.

PS - O pássaro ao fazer o seu ninho não realiza um trabalho, mas pratica uma "actividade". Racional ou irracional?

samuel disse...

Gostei muito deste texto.
Gostei ainda mais de ter ficado a cantarolar "certa e determinada" canção por causa do teu "Que no es lo mismo, pero es igual."

Abraço.

Graciete Rietsch disse...

Surgiu-me esta ideia, não sei se certa ou errada. O ser humano vende a sua força de trabalho mas não é remunerado de acordo com o valor do que produz. A mais valia vai ser arrecadada pelo patrão. O animal é acarinhado e bem tratado pelo seu dono para que o seu trabalho,chamemos-lhe irracional, dê maior rendimento.
Há bastante diferença entre esses dois tipos de comportamento.
Mas também há diferença grande entre esses tipos de trabalho. Não é que eu menospreze os animais ditos irracionais. Tenho muito respeito por todos os seres vivos e pela Natureza em geral. Só que penso que, neste momento, o que está em discussão é a espécie humana e, portanto o trabalho "racional"
De qualquer das maneiras quem mais usufrui de qualquer tipo de trabalho é sempre o patão, o DONO.
E agora uma pergunta sem relação com o assunto em questão. Será a inteligência um atributo apenas do ser humano? Eu penso que não.
Escrevi,escrevi e decerto não disse nada de jeito. Peço desculpa. Um beijo camarada Sérgio e obrigada pelosteus esclarecimentos.

Sérgio Ribeiro disse...

Maria - Obrigado, Maria, pela tua avaliação. Estou numa fase de reflexões (lentas...), arrumando ideias - que há quem as queira desarrumdas - e é bom ter estímulos, quer pela positiva, quer por quem insiste em desarrumar tudo...
samuel - rande Sílvio, não é? Também, apesar do meu mau ouvido (dizem...) estou frequentemente a ouvir esta e outras... sem as pôr a tocar!
Graciete - obrigado pelas tuas reflexões, na sequência e ao encontro das minhas. Sobre isso da inteligência dos animais, conversaremos, está bem?

Abraços gratos

Sérgio Ribeiro disse...

anónimo das 20.36 - esta conversa seria interessante se...

Vou aproveitar-me dela como estímulo para reflexões. Umas questõezinhas:
Não é o boi um instrumento de trabalho?, não foi o escravo um instrumento de trabalho porque o dono se apropriou de uma só vez, e sem prazo/horário, toda a sua força de trabalho?, não é a força de trabalho uma mercadoria para o possuidor dos meios de produção em relações sociais capitalistas? Vamos definir a palavra racional e conjugar o verbo raciocinar?
Por fim, e sobre a questão central sobre que diletamos (eu contra uma sombra que nem sei se é sempre a mesma...), na tradução de «Trabalho assalariado e capital» em que faço fé (Marx não escreveu em português e eu não sei alemão!) está assim: «...como o boi não vende os seus esforços ao camponês.»

Anónimo disse...

"O escravo não vendia a sua força de trabalho ao seu proprietário de escravos, assim como o boi não vende o produto do seu trabalho ao camponês.
Marx.Trabalho Assalariado e Capital, Ed. Avante, pág.39.
Marx. Trabalho assalariado e capital, Ed. Estampa, pág. 44

Sobre a inteligência e a racionalidade (ou não) dos animais sugiro a Graciete Rietsch a leitura da obra de Engels A Dialéctica da Natureza.

Sérgio Ribeiro disse...

De onde transcrevi (tal-e-qual!) a «minha» versão desta frase polémica: (tem isto importância... começo a perguntar-me? até porque em 1849 ainda o Marx não entrara «a sério» na economia...)

Primeira Edição: Escrito de fins de Março a princípios de Abril de 1849 a partir de notas da segunda quinzena de Dezembro de 1847.
Fonte: Publicado segundo o texto de: Karl Marx, Lohnarbeit und Kapital. Separata da Neue Rheinische Zeitung de 1849. Com uma introdução de Friedrich Engels, Berlim, 1891. Traduzido do alemão. Obras Escolhidas em três tomos, Editorial"Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA, Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA.
Tradução: José BARATA-MOURA e Álvaro PINA.
Transcrição: José Braz e Maria de Jesus Coutinho, junho 2006.
HTML: Fernando A. S. Araújo, junho 2006.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.

aferreira disse...

-Sendo o escravo propriedade do senhor encontrasse na mesma situação que qualquer outro animal de trabalho seja boi,cavalo ou mula... são instrumentos de trabalho ou meio de trabalho? -Faço sempre uma confusão entre estes dois conceito.

Sérgio Ribeiro disse...

aferreira - quanto a mim (e trata-se de palavras...), as forças produtivas dividem-se em força de trabalho e meios de produção/trabalho, dividindo-se estes em instrumentos de trabalho e objectos de trabalho.
Os meios de produção podem ser, numas circunstâcias, objectos de trabalho, noutras circunstâncias, instrumentos de trabalho.
Um pau/ramo ao ser afiado é objecto de trabalho, a navalha que o afia é instrumento de trabalho...
O escravo será instrumento de trabalho mas, ao ser "ensinado" sbre o que e como fazer será objecto de trabalho.

aferreira disse...

Muito obrigada camarada.
Agora percebi a diferença entre estes dois conceitos.
Um grande abraço deste teu leitor/aluno diário.