do Público:
António Guerreiro |
Jornalistas
e professores
A
profissão de professor encontra-se hoje tão deslegitimada e degradada como a
profissão de jornalista.
Não
há nenhuma classe profissional tão hostilizada nos jornais como os professores.
De um modo geral, todas as reivindicações dos professores são consideradas
ilegítimas e a classe profissional é vista como detentora de uma força sindical
da qual faz um uso abusivo. Diga-se, em boa verdade, que antes de enfrentar a
hostilidade do jornalismo, os professores tiveram de enfrentar as hostilidades
do modelo de gestão da escola e do ensino, numa guerra da qual saíram vencidos.
Foi-se reduzindo progressivamente o tempo de trabalho autónomo, que era uma
parte importante do tempo de trabalho de um professor (porque se entendia que o
saber – manual ou intelectual, técnico ou teórico, académico ou não — é um
direito à autonomia) e aumentando o tempo de trabalho controlado, que é hoje a
quase totalidade do trabalho docente. O professor ficou assim submetido ao
trabalho das classes proletárias, mas continua a recair sobre ele a imagem de
que é um animal de luxo. E aí começa a caça ao professor. Há já algum tempo que
começou a prosperar, por todo o lado, uma bibliografia que consiste em
testemunhos desencantados de professores e ex-professores.
No
princípio do século XX, a miséria espiritual da vida dos estudantes foi um tema
filosófico que ganhou algum relevo: no princípio do século XXI é a miséria da
vida espiritual dos professores que se tornou relevante. Dir-se-ia que os
professores integraram completamente um hábito muito próprio da escola, essa
instituição que passa muito tempo a falar sobre si própria. Se recuarmos,
talvez encontremos uma justificação para esta má relação entre jornalistas
e professores, que é mesmo uma inimizade se falarmos da relação entre o
jornalismo e a universidade. Neste caso, trata-se de uma velha inimizade com
uma história respeitável. Um eminente universitário italiano explicou-a em
termos muito parciais, até um pouco arrogantes e demasiado marcados por uma
pretensão de auto-legitimação: o discurso do jornalista situa-se na lógica da
opinião; o poder dos professores, pelo contrário, legitima-se em termos de
saber, isto é, o contrário da opinião. Pode ser que esta explicação tenha sido
de algum préstimo, num passado já distante; hoje, dificilmente podemos dizer
que o saber legitima qualquer poder dos professores. Há, no entanto, um
princípio de competição entre jornalistas e professores que remonta ao
Iluminismo, quando nasceu, em paralelo, tanto a universidade moderna como o
jornalismo moderno. Ambos, o jornalismo e a universidade, tiveram a seu cargo
uma missão crítica e de socialização do pensamento. Eles criavam uma cultura para
a sociedade e uma sociedade para a cultura. Segundo a concepção iluminista dos
jornais, eles deviam ser órgãos de formação colectiva de uma opinião pública
racional. E deviam ser não tanto o instrumento de expressão de uma esfera
pública pré-existente (como são hoje entendidos), mas mais o lugar de
constituição dessa esfera pública. Ora, se os jornais tivessem hoje de assumir
uma tal tarefa, já teriam desaparecido (e será que estão em risco de
desaparecer precisamente porque não sabem que tarefa têm para cumprir?). De
certo modo, a evolução da universidade e da escola (nalguns aspectos essenciais
podemos amalgamar as duas instituições) foi paralela à do jornalismo e hoje
todos têm de enfrentar um mundo que ameaça destituir a antiga função que
detinham, sem que essa extinta função tenha sido substituída por outra. E a
profissão de professor encontra-se hoje tão deslegitimada e degradada como a
profissão de jornalista. Uns e outros perderam o privilégio da autonomia e
reina sobre eles uma ordem gestionária.
A propósito:
"(...) A burguesia despiu da sua aparência sagrada
todas as actividades
até aqui veneráveis
e consideradas com pia reverência.
Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de
ciência
em trabalhadores assalariados pagos por ela.(...)"
(Manifesto do Partido Comunista,
Marx e Engels. 1848)
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