terça-feira, fevereiro 16, 2021

Pachorra?

Tinha decidido nada tornar público sobre este episódio sórdido Marcelino da Mata, para não gastar cera com tão ruim defunto, mas o excelente texto de Manuel Loff obrigou-me à transcrição. Excelente o texto, só que não concordo (embora compreenda muito bem o desabafo) com o final. Não há pachorra? Temos de ter pachorra, toda a pachorra e mais do que pachorra! 

Uma história oficial da democracia portuguesa?

Manuel Loff

16 de Fevereiro de 2021, Público

Nas páginas deste jornal, João Miguel Tavares (J.M.T.) lamentou que “a maior parte dos portugueses não faça a menor ideia de quem foi Marcelino da Mata” que morreu há dias, aos 80 anos. Afinal, ele era, diz J.M.T., o “militar mais condecorado do Exército português”, por feitos cometidos durante a Guerra Colonial (e só) que Vasco Lourenço, que o conheceu bem, assegura terem sido “crimes de guerra” (PÚBLICO, 19.7.2018). J.M.T. limita-se a dizer que “é muito possível que tais crimes tenham acontecido. Não sei com exatidão quais foram, mas em bom rigor também não tenho forma de saber”. É natural: como nunca foi julgado nenhum dos responsáveis pelos massacres de Batepá (1953), Pidjiguiti (1959), Mueda (1960), Luanda (1961) e Norte de Angola (os contramassacres de 1961), Wiryamu e mais quatro aldeias (1972), só para citar os mais conhecidos, seria surpreendente conhecer em detalhe, pelo contrário, o que fez Marcelino da Mata. O que a J.M.T. interessa dizer é que “o seu perfil é triplamente incómodo para aquilo que se impôs como a narrativa oficial do Estado Novo, da guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de Abril” por ter sido “um negro que lutou ao lado dos portugueses na guerra colonial; um herói do Estado Novo; um militar barbaramente espancado por militares de extrema-esquerda ligados ao MRPP, em Lisboa, já em plena democracia. É um triplo desconforto, triplamente silenciado.”

Há de tudo neste arrazoado. Nem vou perder tempo com o último argumento; linhas abaixo, os “militares de extrema-esquerda” passaram a ser a “revolução” como um todo ("uma revolução libertadora tortura[va] tão barbaramente quanto uma ditadura"), que é como quem diz que qualquer espancamento que ocorra hoje em Portugal é responsabilidade da democracia. O que é inaceitável é esta insinuação manipuladora que uma pretensa narrativa oficial da democracia silencia a guerra e o colonialismo! Como se fosse incómodo saber que “um guineense preferi[u] Portugal ao PAIGC”, que colonizados lutaram do lado do colonizador contra quem lutava contra o colonialismo. Onde está a novidade? Não foi o goês Casimiro Monteiro um dos assassinos de Humberto Delgado em 1965? Também ele “preferiu Portugal” à democracia.

Se a preocupação de J.M.T. é o reconhecimento do valor dos combatentes africanos na tropa colonial portuguesa, que lugar acha ele que devem ter na memória da democracia os Flechas organizados pela PIDE, sob a direção do inspetor Óscar Cardoso? Falemos das operações em que se envolveram! Em 1992, quando Cavaco, por proposta do Supremo Tribunal Militar, louvou Cardoso por “por serviços excecionais e relevantes”, Francisco Sousa Tavares descreveu-o como “um insulto feito a Portugal e a cada um de nós. E eu devolvo-o [a] essa trupe de generais e de almirantes” (DN, 14.11.1992). Falemos de história oficial, a escrita por Cavaco! Já lançado, porque não propõe J.M.T. à França, à Holanda, à Bélgica, à Rússia, à Polónia, à Ucrânia, à Croácia, à Lituânia que homenageiem (nestes três últimos casos, é verdade, já o fazem...) os voluntários (salvo os que foram à força) das Waffen-SS e da Wehrmacht que, durante a II Guerra Mundial, lutaram ao lado dos nazis contra os seus próprios compatriotas, muitos deles envolvidos nas operações de extermínio de judeus, ciganos, comunistas, resistentes?

Não faço ideia quanto a J.M.T. lhe toca sinceramente o caso de Marcelino da Mata. Percebe-se é que as vítimas dele nada lhe dizem. Na realidade, há um só objetivo em tudo isto: insinuar que a democracia portuguesa inventou uma história e a tornou oficial. O homem que Marcelo nomeou para o oficialíssimo cargo de presidir às cerimónias do Dia de Portugal (2019), um dos opinadores profissionais que mais espaço tem para se ouvir a si próprio, há muito que faz este número do outsider incómodo, debitando a mesma cartilha bolsonarista da ditadura cultural da esquerda que silencia a verdadeira memória do passado.

Também aqui, novidade zero: é o que desde 1945 fazem as direitas extremas ao falarem de uma história dos vencedores da II Guerra Mundial, como se em Nuremberga os Aliados tivessem inventado os crimes contra a Humanidade praticados pelos nazis, como se Auschwitz fosse uma invenção dos sobreviventes dos campos, como se o fascismo fosse uma invenção dos antifascistas e os anticolonialistas tivessem inventado o colonialismo. Já não há pachorra!


4 comentários:

Justine disse...

Tem que se ir mais além do o "já não há pachorra"! temos mesmo de perder a pachorra e denunciar, denunciar, denunciar! como tu continuas a fazer neste blog teu

Olinda disse...

Denunciar e desmontar todo o branqueamento dado aos crimes e violações contra a humanidade é vital.Haja pachorra,haja memória.O coronel Jaime Neves,perante os massacres de Tete,disse :"Nunca houve guerra sem mortandade.O mal é da guerra,e de mais ninguém."Revela bem a mentalidade dos criminosos,daí,a construção da verdade.Bjo

João Baranda disse...

Neste particular, eu presto homenagem a todos os soldados portugueses que combateram na Guerra do Ultramar, desculpem.
Abraço

João Baranda disse...

Crimes de guerra, claro que os houve: UPA - Norte de Angola 1961; Wiryamu, Tete, 1972.
Mas não posso deixar de respeitar soldados portugueses que, numa operação de alto risco, vão resgatar a um país hostil, portugueses que estavam em cativeiro ... isto não nos envergonha, digo eu ...