De um "diário" que não escrevi:
Há sempre uma outra maneira de “ver as coisas”. De as sentir. De as viver.
Há sempre uma outra maneira de “ver as coisas”. De as sentir. De as viver.
Enquanto eu “fugia” de Caxias a chutar na bola-de-meia, num daqueles becos a que chamavam “recreio”, para que os guardas nos abriam as porta das celas, uma a uma e desfasadamente, e nos acompanhavam lá acima para apanharmos ar livre, no beco ao lado, rectângulo de cimento e muros, o Orlando Gonçalves ouvia, vagamente, os ruídos que eu fazia no meu (t)reino de liberdade.
Tínhamos sido presos no mesmo dia, no Notícias de Amadora – que era ele e a família, que, depois e também, éramos nós, seus camaradas e amigos. Eu fora lá levar “material” e, por acaso, estava lá quando a brigada o fora buscar. E, tendo-me encontrado na tipografia, decerto para reduzirem despesas – antecipando medidas agora impostas – o chefe da brigada, depois de telefonar para a sede, por conta da casa, claro, que então não havia telemóveis (e que houvesse…), também recebeu ordem para me levar.
“Olha esse… vale mais dois pássaros na gaiola que um deles a voar”…
E assim foram os nossos, do Orlando e meus, últimos dias do fascismo. Sobre que ele escreveu um livro – precisamente com o título “Caxias - Últimos Dias do Fascismo” – e eu um livro escrevi – “Porque vivi e quero contar…”.
Pois, nesse seu livro, o Orlando conta que ouvira ruídos anormais no espaço ao lado e, depois de algum esforço, se apercebera que era alguém a dar chutos numa bola. Ressabida e brincada que era a minha tendência para chutar em tudo que fosse redondo (ou aproximado), e de muito gostar de “jogar à bola”, logo terá concluído : é o Sérgio, com certeza….
E deve ter sorrido, tendo eu – e uma bola-de-meia – contribuído, de forma inocente e indirecta, para que aquele(s) recreio(s) também tivesse(m) sido de comunicação e de amizade.
Assim tivessem sido tão fáceis as comunicações entre nós, a bater com os nós dos dedos na parede comum das nossas celas contíguas, até tudo se ter transformado, no dia 25 de Abril à noite, numa conversa aos berros, e gritos de dúvida, perplexidade, alegria, entre as janelas gradeadas.
4 comentários:
Que belo fim de jogo de bola de trapos!!!!!!
Um beijo.
A sabedoria de conseguir ser feliz e solidário mesmo em situações de medo e violência. A alegria de poder recordar agora, prolongando o Abril pelo ano todo...
É assim que Abril vive... muito mais do que com discursos nos dias certos e às horas marcadas.
Abraço.
Ah, aquele Abril!...
Um abraço.
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