segunda-feira, junho 27, 2011

Para o dia seguinte, ou um outro lado de um domingo qualquer... como o de ontem

De um "diário" que não escrevi:

Há sempre uma outra maneira de “ver as coisas”. De as sentir. De as viver.
Enquanto eu “fugia” de Caxias a chutar na bola-de-meia, num daqueles becos a que chamavam “recreio”, para que os guardas nos abriam as porta das celas, uma a uma e desfasadamente, e nos acompanhavam lá acima para apanharmos ar livre, no beco ao lado, rectângulo de cimento e muros, o Orlando Gonçalves ouvia, vagamente, os ruídos que eu fazia no meu (t)reino de liberdade.
Tínhamos sido presos no mesmo dia, no Notícias de Amadora – que era ele e a família, que, depois e também, éramos nós, seus camaradas e amigos. Eu fora lá levar “material” e, por acaso, estava lá quando a brigada o fora buscar. E, tendo-me encontrado na tipografia, decerto para reduzirem despesas – antecipando medidas agora impostas – o chefe da brigada, depois de telefonar para a sede, por conta da casa, claro, que então não havia telemóveis (e que houvesse…), também recebeu ordem para me levar.
“Olha esse… vale mais dois pássaros na gaiola que um deles a voar”…

E assim foram os nossos, do Orlando e meus, últimos dias do fascismo. Sobre que ele escreveu um livro – precisamente com o título “Caxias - Últimos Dias do Fascismo” – e eu um livro escrevi – “Porque vivi e quero contar…”.
Pois, nesse seu livro, o Orlando conta que ouvira ruídos anormais no espaço ao lado e, depois de algum esforço, se apercebera que era alguém a dar chutos numa bola. Ressabida e brincada que era a minha tendência para chutar em tudo que fosse redondo (ou aproximado), e de muito gostar de “jogar à bola”, logo terá concluído : é o Sérgio, com certeza….
E deve ter sorrido, tendo eu – e uma bola-de-meia – contribuído, de forma inocente e indirecta, para que aquele(s) recreio(s) também tivesse(m) sido de comunicação e de amizade.
Assim tivessem sido tão fáceis as comunicações entre nós, a bater com os nós dos dedos na parede comum das nossas celas contíguas, até tudo se ter transformado, no dia 25 de Abril à noite, numa conversa aos berros, e gritos de dúvida, perplexidade, alegria, entre as janelas gradeadas.

4 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Que belo fim de jogo de bola de trapos!!!!!!

Um beijo.

Justine disse...

A sabedoria de conseguir ser feliz e solidário mesmo em situações de medo e violência. A alegria de poder recordar agora, prolongando o Abril pelo ano todo...

samuel disse...

É assim que Abril vive... muito mais do que com discursos nos dias certos e às horas marcadas.

Abraço.

Fernando Samuel disse...

Ah, aquele Abril!...

Um abraço.