terça-feira, outubro 14, 2014

O senhor Secundino a ministro das Finanças, já! (ou… contas de merceeiro)

estórias de memória e exemplo

O senhor Secundino era o dono da mercearia da esquina. Da esquina da Rua do Sol ao Rato com a Rua D. Dinis.
Eu, miúdo, ia lá comprar umas coisas de última hora que a minha mãe precisava para o almoço. Ia num pé e vinha noutro porque era logo ali, não havia muito trânsito e para atravessar era só a Rua do tal D. Dinis. Havia outra mercearia ainda mais perto, quase em frente do 85 em que morávamos, hoje 27, mas a minha mãe não gostava do dono. Eu também não.
Por isso, mandava-me ao senhor Secundino (“vai num saltinho ao senhor Secundino e traz-me uma alface … cuidado ao atravessar a D. Dinis … olha!... de caminho traz-me meia dúzia de ovos aí do lugar … toma lá o dinheiro...”). É que havia, ali mesmo, a duas portas, um “lugar de ovos”, numa espécie de cave antes do Farinha dos vidros e da padaria do Leopoldo.

Mas … voltemos ao senhor Secundino e à sua mercearia. Era uma loja – e se me não engano é das únicas que ainda existe das daquele tempo, mais o talho em frente.
Pois o senhor Secundino era homem de vistas largas e de “fazer obras”.
Imagino eu, hoje, que pedisse empréstimos no mercado bancário, às taxas de juro de então, e com garantia de letras reformáveis. Suponho eu, nesta viagem ao passado longínquo e continuando a usar a imaginação, que os juros teriam crescido, as reformas das letras mais difíceis e com ameaças de irreformáveis, e que o senhor Secundino teria tomado uma decisão.
Teria ido ter com o vizinho Neves – o Neves da loja de roupa, atoalhados, panos e … moda – e proposto que ele lhe fizesse um empréstimo de vizinho (e amigo), a juro ligeiramente mais baixo que o do banco ali na Praça do Brasil, empréstimo que ele pagaria logo que pudesse começar a amortizar, o que lhe permitiria dispensar a ida ao banco pedir o que este estaria renitente em lhe emprestar.
O senhor Neves teria aceitado. Mas pondo algumas condições como garantias: que o senhor Secundino tirasse das prateleiras de venda tudo que fosse de pano, que despedisse uma jovem empregada que, a seu critério, a mercearia teria a mais, que aumentasse o horário do caixeiro que ficaria - sem pagamento de horas extraordinárias, claro -, que baixasse a reforma do velho que ajudara o Secundino a “fazer a casa”, e outras coisas de somenos.
Embora não muito agradado, o senhor Secundino teria concordado (ou obedecido), e, contas feitas, ter-se-ia voltado para o comércio de frutas, legumes e correlativos … nada que parecesse pano para mangas.

O tempo, não muito…, correu. Neste tempo de lembranças como em todo o tempo! O mercado bancário alterou-se, baixou juros e estes ficaram mais baixos que os que um senhor Secundino pagaria a um senhor Neves das fazendas (o "FMI da rua do sol").

O senhor Secundino fez contas. Com os juros remanescentes ao banco, com o reforço de empréstimo ao Neves, com os juros a este, a sua dívida só crescia.
Cabeça baixa, dedos enfiados nos já escassos cabelos brancos, decidiu: 
como os juros do banco eram inferiores, iria pedir um empréstimo ali ao balcão da Praça do Brasil, com este empréstimo pagaria ao Neves e passariaa a pagar juros mais baixos do que pagava a este.
O senhor Secundino se assim o pensou, mais depressa o fez.

Pensou, também, candidatar-se a ministro das Finanças. Quando chegasse a democracia.    

2 comentários:

Justine disse...

Uma maneira muito tua de ser didático e divertido! Gostei muito :-))

Antuã disse...

Uma excelente comparação.