estórias de memória e exemplo
O senhor Secundino
era o dono da mercearia da esquina. Da esquina da Rua do Sol ao
Rato com a Rua D. Dinis.
Eu, miúdo, ia
lá comprar umas coisas de última hora que a minha mãe precisava para o almoço. Ia
num pé e vinha noutro porque era logo ali, não havia muito trânsito e para
atravessar era só a Rua do tal D. Dinis. Havia outra mercearia ainda mais perto,
quase em frente do 85 em que morávamos, hoje 27, mas a minha mãe não gostava do
dono. Eu também não.
Por isso,
mandava-me ao senhor Secundino (“vai num saltinho ao senhor Secundino e
traz-me uma alface … cuidado ao atravessar a D. Dinis … olha!... de caminho
traz-me meia dúzia de ovos aí do lugar … toma lá o dinheiro...”). É que havia,
ali mesmo, a duas portas, um “lugar de ovos”, numa espécie de cave antes do
Farinha dos vidros e da padaria do Leopoldo.
Mas …
voltemos ao senhor Secundino e à sua mercearia. Era uma loja – e se me não
engano é das únicas que ainda existe das daquele tempo, mais o talho em frente.
Pois o
senhor Secundino era homem de vistas largas e de “fazer obras”.
Imagino eu,
hoje, que pedisse empréstimos no mercado bancário, às taxas de juro de então, e
com garantia de letras reformáveis. Suponho eu, nesta viagem ao passado
longínquo e continuando a usar a imaginação, que os juros teriam crescido, as
reformas das letras mais difíceis e com ameaças de irreformáveis, e que o
senhor Secundino teria tomado uma decisão.
Teria ido
ter com o vizinho Neves – o Neves da loja de roupa, atoalhados, panos e … moda –
e proposto que ele lhe fizesse um empréstimo de vizinho (e amigo), a juro
ligeiramente mais baixo que o do banco ali na Praça do Brasil, empréstimo que
ele pagaria logo que pudesse começar a amortizar, o que
lhe permitiria dispensar a ida ao banco pedir o que este estaria renitente em
lhe emprestar.
O senhor
Neves teria aceitado. Mas pondo algumas condições como garantias: que o senhor
Secundino tirasse das prateleiras de venda tudo que fosse de pano, que despedisse
uma jovem empregada que, a seu critério, a mercearia teria a mais, que aumentasse
o horário do caixeiro que ficaria - sem pagamento de horas extraordinárias,
claro -, que baixasse a reforma do velho que ajudara o Secundino a “fazer a casa”,
e outras coisas de somenos.
Embora não muito
agradado, o senhor Secundino teria concordado (ou obedecido), e, contas feitas,
ter-se-ia voltado para o comércio de frutas, legumes e correlativos … nada
que parecesse pano para mangas.
O tempo, não
muito…, correu. Neste tempo de lembranças como em todo o tempo! O mercado
bancário alterou-se, baixou juros e estes ficaram mais baixos que os que um senhor
Secundino pagaria a um senhor Neves das fazendas (o "FMI da rua do sol").
O senhor
Secundino fez contas. Com os juros remanescentes ao banco, com o reforço de
empréstimo ao Neves, com os juros a este, a sua dívida só crescia.
Cabeça
baixa, dedos enfiados nos já escassos cabelos brancos, decidiu:
como os juros
do banco eram inferiores, iria pedir um empréstimo ali ao balcão da Praça do
Brasil, com este empréstimo pagaria ao Neves e passariaa a pagar juros mais
baixos do que pagava a este.
O senhor
Secundino se assim o pensou, mais depressa o fez.
Pensou, também, candidatar-se a ministro das
Finanças. Quando chegasse a democracia.
2 comentários:
Uma maneira muito tua de ser didático e divertido! Gostei muito :-))
Uma excelente comparação.
Enviar um comentário