sexta-feira, agosto 06, 2010

AQUI (façam favor de ler ... ou de reler)

Fiquei "preso" a este texto.
Já muito li, ao longo de tantos anos de vida vivida (e lida), e teria a sensibilidade e o sentido crítico absolutamente embotados se me fosse indiferente o modo como, por escrito, me contam casos e gentes. Pois este contar de uma situação, de um pedaço de vida, que acabo de ler, surpreendeu-me, apesar dos sucessivos ameaços que o contador/escritor, um tal Pata Negra ou Rei dos Leittões, vinha fazendo das suas qualidades. Sem alardes...
E, como gosto muito de (ou me é irresistível) partilhar tudo, sobretudo o que acho muito bom, aí vai. Chamar-lhe-ia, por minha conta e risco,
AQUI
(façam favor de ler):

Tó Zé (…) nasceu aqui, cresceu aqui, aqui aprendeu a tratar do gado, do pasto, da vinha e do vinho. Nunca desenvolveu sonhos de sair daqui, nem mesmo quando, há quinze anos, a asfaltagem da estrada permitiu que aqui chegasse o primeiro automóvel.

Com a estrada asfaltada, um tipo adoutorado, amante do sossego, comprou aqui um terreno, e fez uma casa. Tó Zé e a mãe viúva aprenderam a ter vizinhança e cuidam dela como uma horta. Não há muros entre os dois lares que se completam harmoniosamente com conhecimentos, haveres, gatos, galinhas e copos.

Tó Zé, amante do gado, da terra dura e do sítio com vista para um pedaço de Portugal, herdou uma parcela e comprou outra. Nelas estabeleceu a sua criação de gado bovino e caprino. A coisa não dava para muito mas dava para viver intensamente as alegrias e chatices da sua vocação de pequenino.

E não é que o raio do traçado da estrada lhe acertou ao comprido na propriedade, atirando uma borda de nada para a metade que vai ficar do lado de lá e quatro metros quadrados - quatro metros quadrados, reza a escritura já lavrada - na metade que fica do lado da casa da mãe?!
- Antes queria que tivessem feito aqui um rio! Pelo menos podia comprar um barco para atravessar com a tratorinha para o outro lado! Já viste? Fiquei sem nada! Para que porra quero eu o cheque? Nem dá para ir ao Brasil buscar uma brasileira! Vamos mas é beber um copo que este ano ainda há vinho! Para o ano, nem isso!

Chegaram hoje as máquinas, começaram a tombar árvores quase tão impiedosamente como os homens que riscaram no mapa a estrada a passar por aqui. São dias trágicos. Dizem que a IC vem desenvolver não sei quê em nome de não sei que progresso, que vem de não sei onde e vai sei lá para onde, que custa não sei quanto, pago por não sei quem e que tem de estar pronta antes que chova!
- Já viste a minha vida!? Eu já tinha ouvido falar de icês mas nem sequer sabia que eram estradas! Traçado de IC!? Pensei que era alguma marca de gasosa! Como não gosto de estragar o vinho, gosto dele simples, pensei que não era nada comigo! Afinal traçaram-me foi do mapa a mim! E já me disseram que são estradas tão boas que nem podem andar nelas as tratorinhas!... É assim a vida do "home" pobre!

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E foi (adivinho!) escrito assim, como quem não quer a coisa. De uma penada. Ou como quem bebe um copo... com o Tó Zé.

8 comentários:

Fernando Samuel disse...

Excelente texto!: para reler, de facto.

Um abraço.

Graciete Rietsch disse...

Lindo,lindo,lindo texto. Veio-me à
memória o herbanário da Morgadinha dos Canaviais, livro que eu li quando era muito nova, mas de que ainda gosto muito. E acho mesmo que Júlio Dinis também aborda problemas sociais.Pelo menos era um grande entusiasta do liberalismo e, para ele, a grande diferença de classes existia apenas culturalmente.Tanto que eu escrevi, mas a culpa é do lindo texto que tu nos apresentaste.

Um grande abraço.

samuel disse...

Este Pata Negra, ou Rei dos Leittões, tem coisas para dizer... e felizmente, diz tão bem!!!

Abraço.

trepadeira disse...

Olá.
Fiquei tenebrosamente encantado.
Há três anos escrevia algo semelhante sobre um agricultor a quem o tal progresso,além de lhe ter cortado a horta ao meio aquando da A não sei quantos,lhe deixou um buraco,a mais de 500 mts,para passar com o burro e a carroça por baixo do progresso,lhe levou também os filhos e netos lá para longe.
Regressam de vez em quando,com hábitos e linguagem que ele camponês não entende,sempre à pressa.
Nem sequer tempo para um carinho.
Desdenham até do sacrifício que ele faz para manter a horta.
Raios partam o progresso que nos querem impingir.
Um abraço,
mário

Justine disse...

Tens razão: é um excelente e triste texto!

GR disse...

Magnífico texto.
Muito comovente.

Bjs,

GR

Mário disse...

vá lá não se ter enforcado, ido trabalhar para as estradas vendendo as terras ou, comprado uma televisão

Maria disse...

Um texto que dá para pensar. E recordar muitas situações idênticas que acontecem por esse país fora...

Beijo.