segunda-feira, setembro 12, 2011

Assim como os 3 mosqueteiros eram 4...

crónica publicada no Alentejo Popular:

O QUARTO REI

  1. Chama-se Gaspar, como o seu homónimo que há um pouco mais de dois mil anos, na companhia de Baltazar e Belchior, veio de longes terras para cumprir uma missão que o Céu lhe destinara. Os três viajaram então de camelo, que era o que havia, mas agora os tempos são diferentes e este outro Gaspar viaja em meio de transporte bem mais rápido ainda que bem menos propício a ilustrações kitch, e desse modo chegou a Belém, também este diferente, onde que se saiba não há palhinhas nem vaca, apenas podendo suscitar-se eventual dúvida quanto à presença despercebida de algum jumento. Outra significativa diferença é que este Gaspar não trouxe nem incenso, nem mirra, muito menos ouro, oferendas trazidas pelos seus três antecessores, bem se pode dizer que antes pelo contrário. Mas, como bem se sabe, cada um dá o que tem, e este novo mago, não já perscrutador de astros como os seus bíblicos colegas mas sim leitor de muitos tratadistas, trouxe a sua sabedoria, não apenas presumivelmente abundante mas também e sobretudo construída em estrito acordo com o que é recomendado pelos que mandam no específico universo dos que nessa área velam para que não se fuja da ortodoxia dominante, que é vigilante e implacável.
  2. Ouvi-lo falar é, mais do que um prazer, um verdadeiro espectáculo áudio: presumivelmente em consequência das suas andanças por lugares distantes da terra onde nasceu, exprime-se na língua materna com os vagares e as cautelas de quem avança por terrenos incertos, pé aqui, pé só um pouco mais à frente, palavra agora, palavra seguinte devagar pousada nos ouvidos do auditório. É sem dúvida um estilo, e isso seria o bastante para que se reconheça que, tanto quanto a memória alcança, não há nem houve ministro como ele. Mas é claro que mesmo neste caso indiscutivelmente raro importa bem menos o modo como se fala que o que no fim de contas se diz, e é forçoso reconhecer que quanto a este aspecto nada de novo é trazido por este quarto rei mago, estudioso não das estrelas mas sim dos números. Na verdade, vem ele anunciar às gentes o que muitos outros que não são reis nem magos reiteradamente têm vindo a anunciar: que para que se salve este reino onde quem manda não é um rei que o seja por vontade divina, mas sim um punhado de fariseus por força dos dinheiros, é preciso que os pobres se resignem a ser um pouco mais pobres, sem o que os ricos poderiam perder o poder quase mágico de multiplicarem não os pães, como foi conseguido há milénios por um homem muito especialmente dotado, mas sim os lucros que saem já prontinhos para serem arrecadados por transferência para lugares onde mais ninguém lhes possa tocar.
  3. Para mais, aconteceu que um pormenor talvez quase imperceptível, talvez não, revelou que ao longo das suas andanças para lá e para cá, se não desde tempo ainda mais remoto, Gaspar se deixou contagiar por uma espécie de ritual porventura útil para abrir caminhos mas característico de quem não tem grandes cuidados de originalidade. Assim, estava ele a explicar-se no âmbito de uma comissão parlamentar, em princípio lugar de urbanidade e respeito, quando não resistiu à tentação de responder a uma questão posta por um deputado do PCP incluindo na resposta uma farpa que era ao mesmo tempo mais um sinal de sabença e erudição: citou Keynes, autor que fica sempre bem na decoração do discurso de um sábio em Economia e Finanças por menos keynesista que ele seja. Mas a citação tinha uma pontinha envenenada: a tradução portuguesa falava dos “bolchevistas”, termo que em Keynes e também em Gaspar está conotada com a sugestão de faca ensanguentada segura entre os dentes e, por isso mesmo, seria adequadamente apreciada pelo anticomunismo endémico que grassa nos arraiais pêèssedaicos e arredores. Era Gaspar a pagar à corte onde se incrustou o tributo que ali é de regra para se obter o diploma de verdadeiro democrata. A trazer não o ouro, nem o incenso, nem a mirra, nem sequer a redentora sabedoria, mas apenas o tempero um poucochinho ácido de uma não excessivamente deselegante provocação.

3 comentários:

Justine disse...

Belo retrato:)))))

jrd disse...

Este Gaspar nem necessitou de camelo, chegou montado nele mesmo...

samuel disse...

Muito bom!!!

Abraço.