Como a partir de um caso tristemente ridículo se faz uma crónica bem humorada, cheia de pontaria e pedagogia! Senhoras e senhores, estimados espectadores, eis o caso do deputado que perdeu um avião (coisa tão grande!) e dos colegas do dito que não perderam o avião mas não acharam a porta de desembarque para levarem ouro, incenso e mirra ao menino que lhes mandaram adorar:
- Edição Nº2360 - 21-2-2019
Ida e volta
Rangel, eurodeputado, tinha diante de si a perspectiva agradável de uma viagem que lhe daria prestígio e lhe acrescentaria o currículo: ir à Venezuela cumprimentar e apoiar Guaidó, o presidente que se elegeu a si próprio. Para tanto, foi a Madrid e meteu-se num táxi para chegar ao aeroporto. Acontece, porém, que o trânsito em Madrid não parece mais fácil que em Lisboa, que os táxis emperram por lá mesmo quando transportam um eurodeputado em missão superiormente democratizante, e que em consequência Rangel falhou o avião para Caracas. Soubemos desta pequenina odisseia pela televisão, naturalmente, e também por ela pudemos recordar mais tarde que há males que vêm por bem. É que outros eurodeputados, digamos que uma mão-cheia deles, não perdeu avião nenhum, fez a viagem para Caracas que não é nada breve, e chegando à capital da Venezuela foi devolvida imediatamente à procedência porque as legítimas autoridades venezuelanas não estão dispostas a consentir ingerências estrangeiras na sua vida interna. Dizem elas, as legítimas, que o chavismo é um património do povo, e talvez acrescentem que, quando olham para o interior das autocaracterizadas democracias que enformam a União Europeia, não encontram que a gestão da coisa pública em qualquer delas se situe tão decisivamente no interesse dos povos quanto o chavismo na Venezuela, salvaguardadas obviamente as diferenças abissais entre as circunstâncias europeias e a amarga história de submissão ao peculiar colonialismo que é a marca norte-americana em todo o continente.
Como novos reis magos
Ficaram, pois, os devolvidos eurodeputados a digerir a sua rejeição, eles, que já antessaboreavam o prazer e a honra de cumprimentarem Guaidó, o presidente que Trump reconhece e após Trump todos os seus vassalos; o engenheiro formado numa universidade cuja designação, «George Washington», dirá o fundamental quanto aos saberes ali ministrados, designadamente os saberes políticos, que serão os mais relevantes. O episódio, ainda que fique por secundário, é verdadeiramente frustrante: imagine-se que há cerca de dois mil anos os chamados «reis magos» haviam sido impedidos de se ajoelharem diante do presépio e tinham sido devolvidos à procedência. Pois bem: podemos entender que, embora a uma escala diferente, os eurodeputados impedidos de oferecerem a Juan Guaidó as formas actuais de oiro, incenso e mirra, foram despojados da oportunidade de se parecerem pelo menos um pouco com os antigos magos, o que decerto muito lhes agradaria. Sobra que as coisas poderão não ficar por aqui: a União Europeia poderá não encaixar passivamente a desfeita: Rangel perdeu o avião mas não irá perder o espectáculo das agressões múltiplas que vão chover sobre Caracas. Esperemos que diferentes da trágica «chuva» que há já quase quarenta e seis anos desabou sobre Santiago.
Correia da Fonseca
2 comentários:
Um texto com as características próprias do Correia da Fonseca.Expôs o ridículo do e dos deputados europeus,(que nem sequer representam coisa nenhuma)com muita ironia e inteligência.Bjo
Escrita leve e profunda - é obra!
Enviar um comentário