24 de Abril
Ao acordar, tive uma ideia.
Em vez de um par de meias, escolhi três, isto é, três meias ou um par e meio. As duas meias que calcei e uma outra, a do par mais usado, cujo ficou desirmanado.
Com arte e ofício relembrados, enchi-a com páginas do jornal da véspera. Compactei muito bem, dei-lhe forma e tinha nas mãos uma bola-de-meia. Das boas. Das antigas.
Quando o guarda me veio buscar para o recreio, lá em cima, nos terraços compartimentados sobre as celas, estava preparado.
Subi as escadas e… ia contente (pode dizer-se isto?).
Depois de ficar sozinho (mas vigiado!) para aquele curto tempo de ar livre (!) no rectângulo de cimento de um beco rodeado de altos muros, fiz umas corridas em roda, de aquecimento, antes de pôr a bola-de-meia a saltar.
Foi assim que me escapei dali, de Caxias. Enquanto ensaiava fintas e passes malabares, enquanto dava toques sem deixar a bola cair no chão, enquanto chutava contra uma parede como se nesta estivesse desenhada uma baliza, enquanto afinava a pontaria dos remates.
E assim se passou aquele tempo… livre, livre.
Depressa o guarda me fez voltar à cela.
Para o tempo de espera. Para esperar o tempo de interrogatório. De tortura. Para esperar o dia seguinte.
Mas não foi esse o tempo do dia seguinte.
O dia seguinte que chegou a Portugal e a Caxias foi 25 de Abril. De 1974.
6 comentários:
Para nós a Liberdade pode estar numa bola de trapos!
... como um prémio pelo bom jogo...
Abraço.
Eram chutos libertadores, como o eram as longas caminhadas nas curtas celas...
Beijo.
Que grade história ( e muito bem contada)!
E nós continuamos a esperar o nosso 25 de Abril, chutando a nossa bola de trapos que é a nossa raiva.
Como tu escreves bem!!!!!
Um beijo.
Camarada,
esse diário tem que passar a papel!
Para que se saiba e para que não se esqueça que temos homens e mulheres que lutaram e até morreram para hoje pudermos viver em liberdade.
Um grande abraço,
Jorge
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