domingo, junho 26, 2011

Para um domingo como este, ou outro qualquer

De um diário que não escrevi:

24 de Abril
Ao acordar, tive uma ideia.
Em vez de um par de meias, escolhi três, isto é, três meias ou um par e meio. As duas meias que calcei e uma outra, a do par mais usado, cujo ficou desirmanado.
Com arte e ofício relembrados, enchi-a com páginas do jornal da véspera. Compactei muito bem, dei-lhe forma e tinha nas mãos uma bola-de-meia. Das boas. Das antigas.
Quando o guarda me veio buscar para o recreio, lá em cima, nos terraços compartimentados sobre as celas, estava preparado.
Subi as escadas e… ia contente (pode dizer-se isto?).
Depois de ficar sozinho (mas vigiado!) para aquele curto tempo de ar livre (!) no rectângulo de cimento de um beco rodeado de altos muros, fiz umas corridas em roda, de aquecimento, antes de pôr a bola-de-meia a saltar.
Foi assim que me escapei dali, de Caxias. Enquanto ensaiava fintas e passes malabares, enquanto dava toques sem deixar a bola cair no chão, enquanto chutava contra uma parede como se nesta estivesse desenhada uma baliza, enquanto afinava a pontaria dos remates.
E assim se passou aquele tempo… livre, livre.
Depressa o guarda me fez voltar à cela.
Para o tempo de espera. Para esperar o tempo de interrogatório. De tortura. Para esperar o dia seguinte.
Mas não foi esse o tempo do dia seguinte.
O dia seguinte que chegou a Portugal e a Caxias foi 25 de Abril. De 1974. 

6 comentários:

cid simoes disse...

Para nós a Liberdade pode estar numa bola de trapos!

samuel disse...

... como um prémio pelo bom jogo...

Abraço.

Maria disse...

Eram chutos libertadores, como o eram as longas caminhadas nas curtas celas...

Beijo.

Justine disse...

Que grade história ( e muito bem contada)!

Graciete Rietsch disse...

E nós continuamos a esperar o nosso 25 de Abril, chutando a nossa bola de trapos que é a nossa raiva.
Como tu escreves bem!!!!!

Um beijo.

Jorge Manuel Gomes disse...

Camarada,

esse diário tem que passar a papel!
Para que se saiba e para que não se esqueça que temos homens e mulheres que lutaram e até morreram para hoje pudermos viver em liberdade.

Um grande abraço,

Jorge