Nas navegações pela blogosfera, por vezes encontram-se “pérolas”, por vezes fica-se espantado perante algumas manifestações de verdadeira cegueira ideológica, de fanatismo, de anticomunismo primário.
Li, num desses locais “de informação e de reflexão”, que “as experiências nos paraísos socialistas do século xx causaram dezenas de milhões de mortos e centenas de milhões de vidas miseráveis; no que resta hoje desses paraísos, continuam a viver-se vidas miseráveis (os que não morrem), sem o mínimo direito a seja o que fôr, sem as mais básicas liberdades individuais.”
Ora, nas “experiências socialistas do século xx” muita coisa teria corrido mal, mas o que hoje somos, como hoje vivemos, deve-se, em grande parte, ao que levou a essas experiências e ao que elas foram.
A começar pelo decreto nº 1 da “primeira experiência”, de 8 de Novembro de 1917, que decidiu unilateralmente o termo da guerra que vinha desde 1914, e adoptou um princípio – o princípio da coexistência pacífica – que nunca se conseguiu levar totalmente à prática porque, desde o início, se fez uma luta de morte à “experiência” – Churchil, então jovem deputado, afirmou, alto e bom som, que era preciso “matar o monstro no berço”.
Se, para a ideia/ideal do socialismo, a paz e a coexistência pacífica são indispensáveis à construção de uma sociedade mais humana, não é o caso dos interesses que entre manteiga e canhões produzem… o que der lucro e as armas são a mercadoria mais rentável porque, ao consumirem-se, destróem e criam novas necessidades…
Todo o século xx foi atravessado pelo cerco e pela guerra contra as “experiências socialistas”.
Os fascismo, o nacional-socialismo, o nazismo, são “respostas” à interpretação de que a história é feita pela luta de classes, enquanto classes houver, "respostas" que negam que haja classes e, ao mesmo tempo, dizem – como o fazia o Estatuto do Trabalho Nacional, tradução portuguesa de outros documentos – que, no caso de haver conflito entre as classes (que não existiriam…) deve ser resolvido a favor da classe patronal porque esta é a criadora da riqueza!!!
De 1917 à primeira metade dos anos 40, as armas estão apontadas a tudo quanto é, ou pareça poder vir a ser, socialismo, e só a miragem louca e hegemónica da Alemanha nazi, personificada em Hitler, levou a uma reacção “aliada”, depois de se ter esperado que tal loucura destruísse a União Soviética, o que não conseguiu porque houve a resistência a essa invasão bárbara de um povo, com os seus 20 milhões de mortos (este sim é um número histórico, verdadeiro na sua dimensão!).
Logo que terminada a guerra houve quem quisesse continuá-la para leste, para alcançar o que Hitler não conseguira, mas tal não foi possível até porque, por exemplo, Churchil perdeu as primeiras eleições depois da guerra na Grã-Bretanha.
No entanto, não se desistiu, e a guerra fria, e o mac-cartismo, e muitas outras manifestações não tiveram outra finalidade que não fosse a de travar o que era a continuação das “experiências”, com os trabalhadores, com os povos, a procurarem concretizar novas “experiências”…
O facto é que muito do que hoje vivemos, por mais controverso que seja conjunturalmente, foram direitos sociais que os trabalhadores conquistaram porque houve essas “experiências” e/ou porque a elas se tinha de responder com cedências para evitar que houvesse rupturas.
Depois, em resposta a um comentário, o bloguista que tal afirmou sobre as dezenas de milhões de mortos e as centenas de milhões de vidas miseráveis - de que não põe em dúvida o seu convencimento mas que são tudo menos factos, tudo menos “dados rigorosos” - escreveu que “se há nesta história alguns cruzados em tudo iguais a fanáticos religiosos, são os comunistas”.
Ora isto seria ridículo se não fosse demasiado sério e revelador de um fanatismo que se esconde no fanatismo de que se acusa os outros.
Na verdade, pode ler-se a história de mais do que de uma maneira, mas só fanáticos podem atirar, assim, com dezenas de milhões de mortos e centenas de milhões de vidas miseráveis como sendo o fruto de umas “experiências nos paraísos socialistas”, quando factos e dados (estes rigorosos) nos mostram como crescem as desigualdades, a pobreza, a miséria fora e contra essas “experiências”, quando é evidente que a destruição de um sistema social – que tinha, evidentemente, erros – provocou e está a provocar um dos maiores desastres sociais em populações que tinham direitos, como à educação e à saúde, e hoje fogem à miséria e à ignomínia que lhes provocaram.
E só pode estar completamente dominado pelo fanatismo quem desafia quem discorda das suas “leituras” exigindo-lhes que corrijam números (como? dizendo que os milhões são milhares ou dezenas?) e de imediato torna dispensável essa “correcção” porque “não me parece que os factos sejam coisas que preocupem muito os fanáticos religiosos”. Como é o seu caso!
Este é, afirmo-o!, um não-comentário. Há coisas que não se comentam. Mas é uma reflexão sobre fanatismo e suas manifestações.
1 comentário:
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Carlos Drumond de Andrade
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