quarta-feira, agosto 18, 2010

Tomar partido! (Ler Marx: "trabalhador colectivo")

Ler Marx, ou ler sobre Marx, é tarefa inesgotável. Não se trata de ler as páginas todas de todos os livros publicados e manuscritos por publicar e ficar a saber o que elas ensinam, não se trata de ter tudo apre(e)ndido, porque elas só (!) ensinam a observar e a aprender com o que foi vivido e com o que está a ser vivido. E não para ficar a conhecer e a interpretar, mas para intervir com um sentido, para transformar. Para tomar partido.
Numa língua como a portuguesa, isso é muito mais evidente (para mim é…) que para quem tenha como sua língua, ou domine, o alemão, o inglês, o russo, o francês, até o italiano (foi nesta língua, que desconhecia e desconheço, que li Il Capitale há mais de 40 anos…). Porque cada página tem de ser reflectida... por vezes confrontando traduções que não coincidem a partir de um mesmo página (ou frase) original.
Toda a obra de Marx é dessacralizadora. Porque inacabada, encadeando-se, em permanente auto-avaliação e auto-correcção. E sempre incompleta apesar de haver quem se atreva a dizer que a leu toda, ou porque julgue que o fez por ter lido um resumo resumidíssimo de um resumo, ou porque seja incapaz de dizer que não leu mais do que algumas citações…
A releitura de Trabalho colectivo e trabalho produtivo…, de Jacques Nagels, suscita-me estas observações. Sobre questões definidoras na obra de Marx, Nagels procura ser exaustivo e estará perto de o ser. Cita e confronta Grundrisse (os Manuscritos de 1857-58), os três livros de O Capital, as Theorien (Théories sur la Plus-Value ou Histoire des doctines économiques), que são manuscritos de 1861-63 e que deveriam vir a ser a base, segundo indicações de Marx, do livro quarto, e ainda outros manuscritos.
O estudo da questão do trabalhador produtivo e do trabalhador colectivo, que nas edições avante!, 1992 – nos trechos que confrontei – se traduz por “operário total” (“operaio complessivo”, na edição Newton Compton Italiana, 1970), terá a maior importância, até porque o fulcro da análise na economia marxista é a produção, e esta, nos ciclos da actividade económica, em sistema de relações sociais que definem o capitalismo, localiza-se na esfera produtiva (…P…) e não nas fases de circulação (D-M e M’-D’), tendo a maior relevância a delimitação do trabalho produtivo, e não por mera questão semântica ou despicienda mas porque se liga à criação de valor e à unidade dialéctica valor de troca-valor de uso.
Nagels é peremptório: “todas as afirmações de Marx que se estendem sobre um período de vinte anos (1858-1878) concordam: nem um único átomo de valor é criado nas fases de circulação de capital” (p. 183). E é-o a partir de citações e sua reiteração reflectida, não como "argumento de autoridade" a que se submeta, e anota, nesse momento do aprofundado tratamento da questão, quatro aspectos que arriscadamente resumo i) a confusão entre as noções vizinhas mas distintas de função economicamente necessária e função produtiva; ii) a autonomia de uma função (comercial ou financeira) não lhe atribui carácter criador de valor; iii) a crescente importância e aumento de dimensão de uma função não torna produtivo o que, em análise marxista, se define como improdutivo; iv) não são as relações de produção que determinam a natureza produtiva ou improdutiva do trabalho (Marx em O Capital: “… (nada) autoriza a que se confunda os agentes da circulação com os da produção como não se confundem as funções de capital-mercadoria com as de capital produtivo”.
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Tanto pano para tantas mangas e... o que interessa isto para a tomada de partido?



(continua… talvez também aqui)

7 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Interesa muito. Interessa para que se compreenda o valor do trabalho produtivo em todas as suas vertentes e para que se veja a apropriação do seu real valor pelos sistemas ecomómicos e financeiros. Mas lá que é difícil, é.
Ando a tentar dar uma base mais científica à minha tomada de partido, através da leitura dos teus "post" porque sincera e consciente ela é.

Um beijo.

Antuã disse...

Continua que estás a agradar.

Jorge Manuel Gomes disse...

Interessa e muito para a tomada de consciência, para a tomada de Partido, aquele que é o nosso, Camarada!
Aqui, muito tenho apre(e)ndido. Obrigado.

Um abraço desde Vila do Conde.
Jorge Gomes

Maria disse...

Acho que interessa. E muito. E espero continuar a ler-te...

Beijo.

Fernando Samuel disse...

Por mim podes continuar.

Um abraço.

Anónimo disse...

Eu confesso que não tenho tão boa impressão desse livro do Nagels como isso, embora reconheça que foi um acontecimento importante a sua publicação em português.

Também acho que o Nagels procurou, na medida dos seus conhecimentos linguísticos (lamentava não saber japonês) e das fontes a que tinha acesso, ser exaustivo. Mas, ao contrário do Sérgio, acho que está muito longe de o ser.

No entanto, a minha principal objecção é que, numa questão verdadeiramente central - a da produtividade (de mais-valia) dos serviços organizados de modo capitalista -, o livro é uma grande desilusão e, num certo sentido, quase "fraudulento" (ponho entre aspas e peço antecipadamente desculpa por usar um termo tão forte em relação a um autor de que nem minimamente ponho em causa a sua probidade intelectual).

Porquê? Porque nesta questão da produtividade da esfera dos serviços, que é a questão verdadeiramente difícil, passa o livro todo, os dois tomos do livro, a adiá-la para depois achar que se descarta dela em uma ou duas páginas no final.

Isto é, nas questões fáceis, o autor espraia-se por aí fora, confronta tediosamente os textos todos, procede à exegese linha a linha dos textos do Marx, enfim, como diria o Sérgio, é quase exaustivo, mas na questão verdadeiramente difícil vai sempre adiando e passa por ela como gato sobre brasas no final.

Ainda por cima achando que a "resolve" (invocando muito brevemente a argumentação de um economista marxista japonês).

Acrescento apenas que, em meu entender, mas essa é uma discussão difícil de ter neste breve comentário, a "solução", de considerar apenas produtivo (de valor, de mais-valia) o trabalho assalariado nas esferas da produção material, é errada.

Seja como for, o que o leitor gostaria é de, já que tantas vezes se protela a resolução do problema, ao menos que se lhe dedicasse um esforço argumentativo, já não diria igual, mas pelo menos de um décimo do despendido nas questões fáceis.

Grandes divergências à parte, reitero que o livro é útil, que o autor é honesto, peço novamente desculpa da minha adjectivação desproporcionada, e saúdo o Sérgio pelo papel que, nos idos de 70, teve na divulgação desta obra na nossa língua.

HM

Sérgio Ribeiro disse...

Camarada Graciete - Obrigado pelo estímulo
Antuã - Comenta que estás a agradar...
Jorge Manuel G - Obrigado pelo estímulo... e pelo abraço.
Maria - ... cá vou escrevendo.
Fernando Samuel - Obrigadinho.
Grande abraço
HM (não consigo localizar mas não o tomo por anónimo!) - Obrigado pelo comentário. Assim apetece conversar... A minha "boa impressão" do livro do Nagels não resulta de ele ter sido quase exaustivo; poderia tê-lo sido (ou quase), e ter-me deixado "má impressão".
Considero o livro de enorme utilidade por trazer para a discussão (que ainda não começou...) o conceito de trabalho colectivo.
Quanto à questão do que diz ser a «produtividade (de mais-valia) dos serviços organizados de modo capitalista» não a reconheço como «questão verdadadeiramente central», e menos ainda nessa sua formulação.
Questão central considero a do (e onde, em que esferas do circuito) conceito de trabalho produtivo, e ligada ao "valor e à "criação de valor".
Mas fico-me por aqui, embora a conversa possa vir a ser retomada se e quando...

Saudações para todos