terça-feira, maio 10, 2011

Leituras (sempre) oportunas

As "folgas" são para aproveitar. Para leituras - que se fazem sempre... mesmo sem "folgas" - e para transcrever, saboreadamente, como tanto convida José Gomes Ferreira, ainda que o saborear seja, também, reflectir.
Em 22 de Agosto de 1968, escrevia nos seus Dias Comuns (V - continuação do Sol), este trecho, no meio de tantos e tantos que, sendo para saborear, pedem muita reflexão (e transcrição):

«22 de Agosto
Pode dizer-se que nasci com a Revolução Russa, em minha opinião o Jorro de Energia Central do Século XX. Tudo o que se lhe seguiu no Mundo é inegavelmente produto directo, ou indirecto, dessa Acontecimento.(Mais tarde, creio-o bem, os historiadores imparciais reconhecerão esta verdade, hoje contestada por tantos, mas que já se me afigura de limpidez manifesta).
A verificação deste facto nunca me impediu, porém, de ver com olhos críticos o que se passava na URSS - sem acreditar no milagre das palavras mágicas que, quando tocam as coisas, as transformam em céu.
O desenrolar dramático da Revolução de 1917 trouxe-me este sentimento de impotência do sonho, como força instantânea, a par da descoberta da paciência como arma revolucionária.
E como, durante estes cinquenta anos, consegui manter-me alheio a partidos ou tutelas de tipo semelhante(*), sempre me neguei a aceitar que a URSS fosse um modelo de virtudes, do ponto de vista pequeno-burguês, em que todos parecem comprazer-se. O que me impediu de sofrer as desilusões de quase todos os meus amigos, menos cínicos que eu (que acreditavam cegamente nas virtudes revolucionárias do sonho): a ataque à Finlândia, o pacto Germano-Soviético, o desabar do Estalinismo, o esmagamento da Revolução Húngara, etc. E agora, a intervenºao da Rússia e dos seus aliados do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia.
Ninguém faz ideia da tempestade de palavras e de gritos que que se degrenham nos jornais, nas rádios  e nas televisões - sinceros uns, outros hipócritas e reles, de meter nojo.
(A propaganda do costume, a puxar ao sentimento)
Necessitarei dizer que este género de intervenções me são profundamente antipáticas?, até porque, como bom pequeno-burguês que sou,  também tendo a dividir os homens em bons e maus. E a confundir os maus com adversários, os únicos ideologicamente capazes de cometer certos crimes? (Embora verifique com espanto que já existam comunistas bons: os da Checoslováquia!)
Mas, para além da condenação moral (o que também tem importância, claro) - pronto, já condenei!-, gostaria de compreender as razões que levaram a URSS a sacrificar certos valores cómodos de propaganda, em que está bem instalada, a esta aparente Aventura (ineficaz?).
Razões fortes, por certo, embora possivelmente erradas, segundo a óptica pequeno-burguesa do Ocidente.
E se analisássemos o caso do ponto de vista socialista?... Não acabaríamos por concordar com a Rússia? 
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(*) - Em 1980, José Gomes Ferreira, o poeta militante com 80 anos, entrou na sede do Partido Comunista Português e pediu que o aceitassem como militante. Considerou ser a altura de o fazer!
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Duas notas ou sublinhados:

1. Há o ponto de vista socialista e há o ponto de vista pequeno-burguês! E há as dúvidas dos pequenos-burgueses que querem ajudar à revolução e adoptaram, por opção, o ponto de vista socialista embora não se tenham libertado da condição pequeno burguesa. E quando são (e foram!) os responsáveis socialistas a não resistirem e/ou adoptaram o ponto de vista pequeno-burguês?
2. Queria acompanhar este "post" com música. Hesitei entre o Martinho da Vila (O pequeno-burguês) e J.S.Bach (um andamento de um concerto brandenburguês). Decidi-me por este em homenagem ao melómano José Gomes Ferreira. 

2 comentários:

Graciete Rietsch disse...

O grande mal está em o socialista não procurar resolver os problemas enfrentando as situações hostis com a dignidade do seu ideal e deslizar comodamente para pequeno burguês.
Como diz Gomes Ferreira não há varinhas de condão que rapidamente nos dêem o céu. É preciso muita luta, honestidade e a importante paciência revolucionária.
E que paciência é preciso hoje em dia!!!!

Um beijo.

Sérgio Ribeiro disse...

Excelente comentário, em que apenas colocaria socialista entre aspas, dadas as confusões de que se tem enchido o vocábulo, e a sua identificação com social-democrata (e de direita!).
Obrigado, camarada Graciete