Há 52 anos!
A MORTE SAIU À RUA
Ao recordar o “caso Dias Coelho”,
o seu assassinato quando a morte desceu à rua e o
pintor morreu, confronto-me com sentimentos e informação
verdadeiramente essencial para entender o que era o fascismo.
Depois do 25 de Abril,
esperava-se justiça. Os agentes da PIDE assassinos de Dias Coelho estavam
identificados, e foram presos e julgados. O recurso sobre o julgamento em
primeira instância, por parte da filha de Dias Coelho face à quase absolvição
dos réus, terminou em princípio de 1977, pelo que tudo correu ainda no período de
que memória dos mais novos está envenenada com “informação histórica”
completamente contrária ao que estes factos ajudam a conhecer.
A luta de classes nunca teve
tréguas em Portugal (nem noutro lado qualquer), e os autores da sentença serviram
uma classe, a mesma que era servida pelos agentes da PIDE que prendiam, torturavam
e matavam, e que, quando a relação de força obrigou a que fossem julgados,
tiveram quem os defendesse em vez de os julgar, com neutralidade na aplicação
das leis.
Foi António Domingues que, segundo a revista SubJudice 25-Justiça e Memória, disparou sucessivamente os (cito) “dois tiros de um agente da Direcção Geral
de Segurança sobre um suspeito, militante do Partido Comunista Português, sendo
o segundo tiro com a arma muito próxima da roupa da vítima, perfurando a bala o
esterno, a cartilagem da 5ª. costela, o pericárdio e o coração, provocando a
sua morte.”
O libelo acusatório, sobre o qual
os juízes deveriam julgar, dizia:
«O Ex.º Promotor de Justiça (…) acusa o réu António Domingues (…) de
ter cometido um crime previsto e punido pelo art.º 349.º do Código Penal,
concorrendo as agravantes 11.ª (espera), 25.ª (noite) e 28.ª (arma) do art.º
34.º do mesmo diploma porquanto, no dia 19 de Dezembro de 1961, os então
agentes da PIDE António Domingues, Manuel Lavado e Pedro Ferreira (…) foram
encarregados pelo seu chefe de brigada da mesma polícia, José Gonçalves, de
localizar e prender José António Dias Coelho, também identificado nos autos e
militante do Partido Comunista Português. Para tal efeito, deslocaram-se à zona
da Rua dos Lusíadas, desta cidade de Lisboa, onde se colocaram já de noite,
pelas 19 horas, a uns cem metros uns dos outros, aguardando a vinda do referido
José António Dias Coelho. Tendo este passado pela Rua dos Lusíadas cerca das 20
horas e tendo-se apercebido até da presença dos referidos agentes, começou a
correr pela mesma artéria, derivando depois para a Rua da Creche no sentido do
Largo do Calvário. Em sua perseguição correram os agentes referidos. Já na Rua da Creche, sensivelmente em
frente do nº 30 de polícia, foi o José António Dias Coelho agarrado pelo agente
Manuel Lavado. Entretanto, chegou junto dele o réu que desfechou dois tiros de
pistola marca “Star” – calibre 7,65 mm, examinada nos autos e que lhe estava
distribuída – sobre o referido José António Dias Coelho.»
Mas, se foi este o libelo
acusatório, isto é, acusação, com base na legislação, para os factos provados,
suas agravantes e atenuantes, a sentença não deu como provada a intenção de
matar para poder convolar (o que quer dizer passar rapidamente de um estado a
outro) a acusação do crime de homicídio voluntário para a do crime do art.
361.º do mesmo Código, que é apenas o de “ofensas corporais voluntárias de que resulta privação de razão,
impossibilidade permanente de trabalhar ou a morte”.
Se o libelo acusatório referia
agravantes – espera, noite e arma –, o tribunal militar que julgou o recurso decidiu que não
existia a agravante espera… “pois até à
chegada da vítima o réu não formulou o propósito de sobre ele disparar” o
que é verdadeiramente inacreditável, uma vez que, existindo espera, se poderia perguntar como
formularia o réu o propósito de disparar e de matar (ou de causar ofensas
corporais…)? Disparando tiros para o ar, ou treinando-se atirando sobre outros
alvos que não Dias Coelho?
Para mim, ainda mais inconcebível
é o apagamento deste agravamento por sido eu testemunha privilegiada da espera, pois dela tive toda a percepção
quando, pouco antes das 20 horas, circulava pelas cercanias para tomar posição
para o encontro com o camarada de que só conhecia o pseudónimo, no lugar que antes
marcáramos e a que ele faltou por ter sido assassinado! Depois da espera…
Por outro lado, o mesmo tribunal
acrescentou quatro atenuantes, que deu como provadas,
- o bom comportamento anterior do réu;
- a confissão espontânea;
- o possuir vários louvores;
- o ter agido, com os seus disparos, para evitar que
se frustrasse a missão que estava desempenhando.
Custa a acreditar!
Quanto à primeira “atenuante”, a
argumentação do advogado da filha de Dias Coelho, invocando imagem comparativa
com a quadrilha de Al Capone, sublinhou que só
por ridículo se diria que um gangster, membro de uma quadrilha de assassinos, pudesse
considerar-se bem comportado antes do primeiro assassinato pela simples razão de
não ter antes cometido qualquer assassínio.
A confissão espontânea não existiu, até porque, entre outras coisas,
o Tribunal deu como provada a voluntariedade do disparo e o réu negou a
voluntariedade do disparo… mas confessou (e não espontaneamente!) o que era de
todo impossível negar: que disparou!
E, em tudo o mais, foi falso e mentiroso. Como se comprovou.
Relativamente à atenuante louvores, que o réu possuía, é
absolutamente inacreditável. Continuando a usar a imagem comparativa da
quadrilha de Al Capone (ou outra), é como se o louvor do chefe da quadrilha
fosse atenuante a ter em devida consideração. É que os referidos louvores foram
concedidos pela PIDE, e é escandaloso que o primeiro louvor tenha sido
atribuído a 27 de Dezembro de 1961, oito dias depois do crime de assassinato
para que veio servir de atenuante.
Ler esse louvor define bem a instituição criminosa que era a PIDE, e como
era servida por assassinos: “…louvo o
agente de 2ª classe António Domingues porque, cumprindo sempre com zelo,
dedicação e espírito de sacrifício, as missões que lhe foram confiadas,
contribuiu grandemente para que fossem capturados elementos subversivos na
associação secreta denominada Partido Comunista Português desenvolvem larga
actividade directiva e cuja acção representa ameaça e perigo para a ordem
social estabelecida”. (Ordem de
serviço nº 361/61 da PIDE, assinada por Homero de Matos).
Capturados, torturados e
assassinados, acrescente-se!
Por último, a atenuante de que o
réu teria disparado para evitar que se
frustrasse a missão que estava desempenhando, é esclarecedora. O réu
disparou dois tiros, o segundo à queima-roupa, sobre um homem agarrado por um
seu “colega”… para que a sua missão não se frustrasse! Pelo que só se pode
concluir que a missão era a de matar um homem por ser suspeito de pertencer ao
Partido Comunista Português. Quase só faltou acrescentar que a culpa do
assassinato foi do assassinado, de Dias Coelho, por ter tentado fugir à prisão
e, assim, impedir os agentes da PIDE de cumprirem a missão de o prenderem.
Para os juízes que assim julgaram, José Dias Coelho era, acima de tudo,
um comunista!... logo, alguém merecedor de ser assassinado. Ou cujo assassino
não deveria ser condenado, mas sim louvado!