domingo, fevereiro 16, 2014

Para este domingo e para não se dizer que (aqui) não se falou de Miró

Com este texto (de antologia)... fica dito! 

Edição Nº2098  -  13-2-2014

Miró, os cães e a lua

Quando estoirou o que talvez possa designar-se «o escândalo Miró», lembrei-me de um quadro do pintor catalão que há muitos anos olhei, é claro que apenas em reprodução, e que então me pareceu especialmente tocante, talvez por se situar na intercepção do fascínio estético com uma sugestão melancólica. O quadro não faz parte das oitenta e cinco obras que na passada semana vulgarizaram o nome do pintor no âmbito da comunicação social portuguesa, habita o Museu de Arte Moderna de Filadélfia (que decerto nunca planeou vendê-lo em hasta pública e, pelo contrário, o guarda como um tesouro que de facto é) e, como é normal, tem um título: «Cão ladrando à Lua». Não me parece que tenha sido o título que me levou a recordá-lo agora, mas admito que possa ter havido uma relação não consciente entre as palavras do título e o conjunto de latidos e rosnidos que a abortada venda na Christie’s suscitou. É que, como se sabe, a oposição de sectores e personalidades da vida portuguesa à tentada transacção desencadeou um conjunto de protestos por parte dos que, sim, queriam e ainda querem trocar por um punhado de euros a única grande colecção de pintura de um autor moderno que quase por acaso chegou às mãos do Estado português, isto é, do País. E esses protestos, por vezes formulados por criaturas que se mantiveram indiferentes à compra por muitíssimo mais dinheiro de dois submarinos de baixíssimo valor estético e duvidosa utilidade operacional, pareceram-me muitas vezes constituir um coro de ladridos, comparação a que me atrevo sem qualquer propósito de ofender mas que se me afigura adequada por uma ou duas presumíveis razões: porque em parte terão partido de quem se preocupa prioritariamente com a preservação do osso que lhe coube e/ou por quem olha a obra de arte, sobretudo a obra de arte do último século, de longe e sem entender o seu fascínio. Como o cão de Miró parece olhar a lua distante a brilhar na negrura da noite.
Todo o mal fosse esse!
A actuação do Governo neste caso foi preciosa como ilustração de algumas das suas mais interessantes características: ignorância e fastio perante os valores culturais, arrogância e persistência no erro, recusa de assumir responsabilidades pelos abusos cometidos, inescrúpulo conducente à prática de ilegalidades que tribunais formalmente identificam e denunciam, tentativas para endossar para outros a autoria dos disparates e péssimas acções que comete. Tudo isto desfilou na TV perante os nossos olhos indignados, talvez por vezes também um pouco divertidos quando a incompetência e a desvergonha se trajaram de ridículo. Entretanto e à margem da polémica central, aconteceram pormenores de algum modo saborosos que seria desperdício deixar passar completamente em claro. Por exemplo, quando o senhor Presidente da República foi perguntado sobre o caso por um grupo de jornalistas que, como de costume, o assediou à saída ou à entrada de uma cerimónia oficial. No muito peculiar estilo a que nos habituou, o senhor Presidente respondeu que não ia responder, ou mais exactamente, que não ia dar qualquer opinião porque a questão havia sido «utilizada como arma de arremesso» na luta política entre os partidos e ele por aí não se mete. Decerto por distracção, o PR não se deu então conta de que, precisamente, acabara de dar opinião, e opinião impregnada de opção política e partidária em favor do Governo: naquele mesmo momento partilhara o argumento de que as oposições haviam utilizado o Caso Miró para atacarem o executivo que apenas praticara um inocente e necessário acto de gestão. Com muito respeito e a devida vénia, atrevo-me a adaptar à situação um velho provérbio popular: mais depressa se apanha um distraído do que um coxo. Mas não há que mostrar uma eventual surpresa: já se sabe que o senhor Presidente não é especialmente vocacionado para a expressão verbal e de improviso, que é homem mais dos silêncios fecundos do que das frases e dos gestos. Paciência, é claro, não se pode ter tudo, além de que essa fragilidade não é grave. Ou, dizendo-o de outro modo: todo o mal fosse esse!



Correia da Fonseca

Para ler (ou reler) e ver neste domingo

3 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Reli. Mas acho-o muito bem adequado a este blog
Um beijo.

Justine disse...

Concordo com CF: todo o mal fosse esse!

Antuã disse...


É público e notório que Cavaco e a comandita do governo são intelectual e culturalmente uns broncos.