quinta-feira, dezembro 15, 2016

A guerra é a guerra

No Expresso curto desta manhã

Quando o horror do tempo que se vive é relatado por um jornalista com profissionalismo, cultura e sensibilidade:

A cor das lágrimas por Alepo

Chora por mim ó minha infanta
Escorre sangue o céu e a terra
Ah pois por mais que seja santa
A guerra é a guerra
Regressaram os combates a Alepo. A Síria continua a ferro e fogo. As televisões ficam saturadas de imagens cruéis. Lançam-se apelos lancinantes. Veem-se rostos desesperados. Há mortos. Há feridos. Há gente em ruínas. Há um quotidiano rasgado por uma violência inaudita. Havia um cessar-fogo. Agora há de novo tiros. Balas cravadas no tempo. E nos corpos inertes. E na verdade feita um frangalho num conflito infernal. A guerra é a guerra, cantava Fausto no disco “Por Este Rio Acima”. Tremenda verdade. A propaganda é um elemento crucial das guerras. Pelo que se conta e, tantas vezes, pelo que se esconde. Segundo uma das hipóteses colocadas para este regresso dos combates, as condições impostas pelo Irão terão inviabilizado a evacuação de Alepo. É uma hipótese. Assumi-lo é reconhecer, como o faz Robert Fisk, o conceituado jornalista do jornal inglês “The Independent”, que há mais que uma verdade para contar na horrível história de Alepo. Fisk diz que “os políticos ocidentais, ‘especialistas’ e jornalistas vão ter de reformular as suas histórias nos próximos dias, agora que o exército de Baswhar al-Assad retomou o controlo da parte oriental de Alepo. Vamos perceber se os 250 mil civis ‘encurralados’ na cidade era assim tão numerosos. Ouviremos contar porque é que não foram capazes de partir quando o governo Sírio e a força aérea russa suspenderam os seus ferozes bombardeamentos na parte oriental da cidade. E vamos aprender um pouco mais sobre os ‘rebeldes’ que o Ocidente – os EUA, Inglaterra e os nossos amigos cortadores de cabeças do Golfo – tem vindo a apoiar”.
A situação é de tal ordem complexa que a CNN se viu na necessidade de tentar elaborar um gráfico com a rede de ligações e cumplicidades entre os diferentes protagonistas no terreno, para reconhecer, no final, que mesmo assim será difícil encontrar numa narrativa que se encaixe no esquematismo da generalidade da comunicação social, muito disponível para arrumar tudo em dois caixotes: o governo Sírio por um lado, os rebeldes por outro. Como a vida seria simples, se um conflito como este fosse traduzível nesta dicotomia destinada a facilitar a arrumar no tabuleiro de xadrez os bons e os maus. O problema é que um tabuleiro de xadrez, que é aquilo em que está transformada a Síria, tem muitas peças. Demasiadas peças a movimentarem-se em múltiplas direções. É por isso que a guerra é a guerra. E, ali está em curso, também, uma poderosa guerra de propaganda que torna pornográfica a exploração do sofrimento, do horror, da miséria, dos mortos, em nome de uma suposta superioridade moral.
É fundamental reconhecer que não existe informação fiável sobre os crimes que estão a ser cometidos, e quem os está a cometer. Há uma implícita indiferença à tragédia quando se verifica este acantonamento em posicionamentos rígidos dos quais resulta a pretensão de ignorar uma evidência: na Síria está em vigor uma guerra por procuração. Há o governo Sírio, a Rússia e o Irão, mais milícias libanesas e iraquianas por um lado, e, do outro lado, a apoiar múltiplas fações, algumas delas com ligações à Al-Qaeda ou ao chamado Estado Islâmico, estão esse intocável modelo de democracia chamado Arábia Saudita, bem como o Qatar, e, a um outro nível, os EUA, a França, Inglaterra, ou o Egito e a Turquia, cujos apoios também vão oscilando ao sabor das conveniências.
Aqui chegados, percebemos a confusão moral instalada na generalidade dos meios de comunicação social do Ocidente: à força de tanto se pretender diabolizar o governo Sírio à boleia da diabolização de Putin, ignoram-se, escamoteiam-se, finge-se nada acontecer de anormal nas zonas controladas ou nos ataques efetuados por grupos como a ex-Frente Al-Nosra (ramo sírio da Al-Qaeda), o Al Nusra e outros grupos ligados ou subsidiários do Estado Islâmico.
De facto, a guerra é a guerra. E quando a guerra avança, é melhor não dar cor às lágrimas. Porque as lágrimas são o espelho dos destroços humanos gerados pela violenta irracionalidade. Não há bons e maus neste conflito. Há mortos. Muitos mortos. E muitas lágrimas.

1 comentário:

Olinda disse...

Felizmente que na classe jornalística ainda existem profissionais honestos e inteligentes.São tão poucos,que se destacam.Bjo