domingo, dezembro 25, 2016

Para este domingo - 3 notas para uma memória com 55 anos

1 - 

A Morte Saiu À Rua

José Afonso

  

A morte saiu à rua num dia assim 
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai 
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte
 o pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação






2 -
Todos os anos, desde 1961, este tempo dito de Natal traz consigo uma das  memórias mais vivas, mais fundas, da minha já longa vida, A morte saiu à rua em 19 de Dezembro, naquele lugar com o nome de Rua da Creche (hoje Rua José Dias Coelho), e assassinos  mataram o camarada que eu esperava uma centena de metros antes da esquina em que estava à hora combinada. Depois de dias de ansiedade, no desconhecimento do que acontecera, de busca quase desesperada, soube que o camarada se chamava José António Dias Coelho, que era escultor e que fora "assassinado a tiro em Alcântara, em circunstâncias que continuam por esclarecer e o funeral efectua-se na terça feira, a hora a determinar, do Instituto de Medicina Legal para cemitério a designar" (num jornal de 24 de Dezembro). 
Na terça feira seguinte à de 19 de Dezembro, quando a morte saíra à rua, a 26 de Dezembro de 1961 o corpo de José Dias Coelho desceu à terra que o abraçou.

3 -
A 25 de Abril de 1974, treze anos depois, floriram rosas de uma nação, depois de tantas covas feitas no chão. Seria o tempo de fazer justiça, com o "olho por olho", o "dente por dente" apenas como metáforas. Alguma justiça se fez, muita ficou por fazer. Aos assassinos de Dias Coelho até o louvor do próprio violento aparelho repressivo pelo "feito" (louvor de 27 de Dezembro de 1961!) serviu de atenuante no inacreditável julgamento e sentença do 2º Tribunal Militar, em 1976. 
Transcreve-se, da minuta do recurso à tal sentença, feito pelo advogado Fernando. Luso Soares, entre uma galeria de breves depoimentos, o de quem é hoje, 40 anos depois (e 55 anos depois do assassinato) Presidente da República:
"De um advogado, jornalista e político, Marcelo Rebelo de Sousa, no «Diário de Notícias de 6 de Janeiro de 1977: «Não pode deixar de causar preocupação, em termos políticos gerais, que um regime democrático, ao julgar os agentes de um aparelho repressivo, não seja capaz de julgar, de forma exemplar, o próprio aparelho»

adenda (à maneira de assinatura) -
Dedicatória de Fernando Luso Soares no seu livro O Caso Dias Coelho


Para o Camarada e Amigo Sérgio Ribeiro, no 2º dia da "Festa do Avante", com as saudações comunistas muito sinceras, em particular porque referidas, quanto a este opúsculo, à sua "presença" (oculta) neste drama, Lx, 10/9/1977  ass.

1 comentário:

Justine disse...

Excelente texto, post belo e didáctico!