A Morte Saiu À Rua
José Afonso
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte
o pintor morreu
o pintor morreu
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação
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Todos os anos, desde 1961, este tempo dito de Natal traz consigo uma das memórias mais vivas, mais fundas, da minha já longa vida, A morte saiu à rua em 19 de Dezembro, naquele lugar com o nome de Rua da Creche (hoje Rua José Dias Coelho), e assassinos mataram o camarada que eu esperava uma centena de metros antes da esquina em que estava à hora combinada. Depois de dias de ansiedade, no desconhecimento do que acontecera, de busca quase desesperada, soube que o camarada se chamava José António Dias Coelho, que era escultor e que fora "assassinado a tiro em Alcântara, em circunstâncias que continuam por esclarecer e o funeral efectua-se na terça feira, a hora a determinar, do Instituto de Medicina Legal para cemitério a designar" (num jornal de 24 de Dezembro).
Na terça feira seguinte à de 19 de Dezembro, quando a morte saíra à rua, a 26 de Dezembro de 1961 o corpo de José Dias Coelho desceu à terra que o abraçou.
3 -
A 25 de Abril de 1974, treze anos depois, floriram rosas de uma nação, depois de tantas covas feitas no chão. Seria o tempo de fazer justiça, com o "olho por olho", o "dente por dente" apenas como metáforas. Alguma justiça se fez, muita ficou por fazer. Aos assassinos de Dias Coelho até o louvor do próprio violento aparelho repressivo pelo "feito" (louvor de 27 de Dezembro de 1961!) serviu de atenuante no inacreditável julgamento e sentença do 2º Tribunal Militar, em 1976.
Transcreve-se, da minuta do recurso à tal sentença, feito pelo advogado Fernando. Luso Soares, entre uma galeria de breves depoimentos, o de quem é hoje, 40 anos depois (e 55 anos depois do assassinato) Presidente da República:
"De um advogado, jornalista e político, Marcelo Rebelo de Sousa, no «Diário de Notícias de 6 de Janeiro de 1977: «Não pode deixar de causar preocupação, em termos políticos gerais, que um regime democrático, ao julgar os agentes de um aparelho repressivo, não seja capaz de julgar, de forma exemplar, o próprio aparelho»"
adenda (à maneira de assinatura) -
Dedicatória de Fernando Luso Soares no seu livro O Caso Dias Coelho
1 comentário:
Excelente texto, post belo e didáctico!
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