Roma já paga a traidores?
É uma estória antiga que se integra na História suficientemente antiga para
ser anterior à nacionalidade portuguesa, aí por volta do século II A.C. Nesse
tempo, ao que consta, havia um grupo de obstinados que resistia à ocupação
romana. Eram chefiados por um sujeito chamado Viriato, homem que vinha do
proletariado rural daquele tempo, pastor de sua profissão, de tal modo hábil na
luta de guerrilha que infligia sucessivas derrotas às muito famosas legiões
romanas. Compreensivelmente, a situação desagradava muito ao general romano com
comando local, Cipião de sua graça, que decidiu resolver a dificuldade por um
caminho lateral, digamos assim: comprando os serviços de três indivíduos do
campo lusitano com vista ao assassínio de Viriato. Negócio fechado, dito e feito:
quando, certa noite, o chefe lusitano dormia, os três assassinos penetraram na
sua tenda e degolaram-no, após o que correram para dar a boa nova a Cipião e
sobretudo para arrecadarem os proventos que lhe haviam sido prometidos pela
consumação do crime. Esperava-os, porém, uma duríssima decepção: o general
romano encarou-os com desprezo e explicou-lhes: « – Roma não paga a
traidores!». Para mais, mandou que fossem decapitados, medida extrema que
actualmente não está generalizada, optando-se preferivelmente pela utilização
de drones «made in USA» quando os interesses ou as estratégias do Império estão
em risco. Quanto a traidores e a traições, não consta que do século II A.C.
para cá tenham diminuído substancialmente. Já pouco se pratica a degola, é certo,
mas continua a haver muitos adormecidos contra os quais avança a traição.
Digamos que como ladrões nas trevas, para deixar aqui uma fórmula bíblica que
vem mantendo actualidade através dos tempos.
A obsolescência da honra
É aqui que entra a referência à actualidade portuguesa e ao que dela se vai
podendo saber por obra e graça dos televisores que com conta, peso e medida,
nos vão dando notícias dela. Foi assim que os cidadãos telespectadores puderam
conhecer a peça oratória de grande significado com que o senhor PR nos
favoreceu recentemente: nela já esteve presente e transparente o convite para
que pelo menos um bom punhado de deputados se deixasse de lealdades pelos
vistos obsoletas e se resolvesse a degolar politicamente o seu líder. Não se
sabe qual o preço da traição proposta, sendo aliás provável que nem sequer ele
tenha chegado a ser definido, o que seria demasiado indecoroso, mas faz parte
de uma sabedoria generalizada e difusa que os serviços prestados às novas
Romas, ainda que quando estas sejam relativamente minúsculas e nada ilustres,
constituem créditos a prazo incerto. Aliás, o convite foi depois reiterado por
outras vozes de menor estatuto mas ainda assim qualificadas, tanto e de tal
modo que a ruptura com os imperativos deveres de lealdade, isto é, a
traiçãozinha no seu estado mais óbvio e reconhecível, surgiu promovida à
condição de acto patriótico, mascarada de comportamento decorrente de maus
princípios, é certo, mas com um suposto bom fim, o que é típico de todas as
operações de camuflagem lançadas sobre um estímulo à desonra. Sendo que neste
caso o objectivo é visível à vista desarmada: a manutenção no poder dos que
estão ao serviço dos fortes contra os fracos, dos injustos contra os justos,
dos ricos contra os pobres. Caberá aqui lembrar a objecção em tempos formulada
por uma excelente senhora: « –Eu não sei o que é um rico!», disse ela em estilo
de semeadora de nevoeiros. Não saberá, mas os pobres sabem o que é um pobre, e
neste momento há milhões deles em Portugal. É contra eles que, numa prática
tanto mais vergonhosa quanto provenha de mais alto na estrutura do Estado, são
agora lançados repetidos convites à traição. Resta saber se, após a sua
eventual consumação, Roma pagará aos traidores. E como.
Correia da Fonseca
*****!
1 comentário:
Já tinha lido a crónica do Correia da Fonseca.Achei "uma delícia".Sempre extraordin
ario.Bjp
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