(...)
A propósito de Melo, é com gosto
que vou transcrever – pelo menos aqui – a crónica da Ana Cristina Leonardo na revista do Expresso:
ISTO ANDA TUDO LIGADO
ANA
CRISTINA LEONARDO
SE NÃO SABE PORQUE É QUE PERGUNTA?
Tudo o que é sólido se dissolve no ar. Conhecida frase do
“Manifesto Comunista”, autonomizada da sua origem, autores e significado
primeiros, ganhou amplitude, subiu aos céus, incluindo aos da poesia, e entrou
no imaginário popular, maior do que os seus autores, mais perene do que os seus
autores, igualando o destino de muitas outras expressões e frases que se perdem
na memória do tempo: o francês “cherchez la femme”, de longe preferível ao
americano “follow the money”, ordem popularizada por Alexandre Dumas (pai) em
“Os Moicanos de Paris”, recua na verdade a Juvenal, poeta satírico romano do
final do século I; discutir o sexo dos anjos, que é hoje sinónimo de discussão
estéril e bizantina, foi na realidade uma discussão séria e bizantina: decorreu
à porta fechada em Constantinopla enquanto os turcos tomavam a cidade e caía o
império (isto recorda-me qualquer coisa que agora não me ocorre relacionada com
febres legislativas que incluem alheiras e outros enchidos...). Já agora note-se que, na edição dirigida por José Barata-Moura e
Francisco Melo para as Edições Avante!, a frase de Marx e Engels, decerto mais
conforme ao original, aparece assim: “Tudo
o que era dos estados [ou ordens sociais — ständisch] e estável se volatiliza,
tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a
encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações
recíprocas.” Ganha-se em precisão, perde-se em poesia... A frase
ganhou asas com o livro do filósofo marxista norte-americano Marshall Berman,
que a usou para título do seu ensaio sobre a modernidade, que ele analisa
começando pelo “Fausto”, de Goethe, e é repetidamente citada — talvez até já
tenha sido usada em publicidade, um dos meios mais eficazes de esvaziamento ou
adulteração de sentidos (que o Allgarve nos tenha ensinado alguma coisa), mais
um sintoma do “estado líquido” em que nos encontramos mergulhados, conceito de
Zygmunt Bauman que ele explana em vários livros, não tão longe assim de Berman.
Mas se tudo o que é sólido se dissolve no ar, o que se dissolve no ar não
desaparece, pelo menos de acordo com Lavoisier, que nos garante que na natureza
nada se cria, nada se perde, tudo de transforma. Regressando, pois, ao sentido
pragmático inicial da frase do “Manifesto Comunista”, ocorre perguntar: os refugiados
que entretanto deixaram de ocupar a frente das notícias volatizaram-se para
onde?”
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