quarta-feira, junho 01, 2016

Uma página de quase-diário - leituras

(...)
A propósito de Melo, é com gosto que vou transcrever – pelo menos aqui – a crónica da Ana Cristina Leonardo na revista do Expresso:

ISTO ANDA TUDO LIGADO







ANA CRISTINA LEONARDO

SE NÃO SABE PORQUE É QUE PERGUNTA?

Tudo o que é sólido se dissolve no ar. Conhecida frase do “Manifesto Comunista”, autonomizada da sua origem, autores e significado primeiros, ganhou amplitude, subiu aos céus, incluindo aos da poesia, e entrou no imaginário popular, maior do que os seus autores, mais perene do que os seus autores, igualando o destino de muitas outras expressões e frases que se perdem na memória do tempo: o francês “cherchez la femme”, de longe preferível ao americano “follow the money”, ordem popularizada por Alexandre Dumas (pai) em “Os Moicanos de Paris”, recua na verdade a Juvenal, poeta satírico romano do final do século I; discutir o sexo dos anjos, que é hoje sinónimo de discussão estéril e bizantina, foi na realidade uma discussão séria e bizantina: decorreu à porta fechada em Constantinopla enquanto os turcos tomavam a cidade e caía o império (isto recorda-me qualquer coisa que agora não me ocorre relacionada com febres legislativas que incluem alheiras e outros enchidos...). Já agora note-se que, na edição dirigida por José Barata-Moura e Francisco Melo para as Edições Avante!, a frase de Marx e Engels, decerto mais conforme ao original, aparece assim: “Tudo o que era dos estados [ou ordens sociais — ständisch] e estável se volatiliza, tudo o que era sagrado é dessagrado, e os homens são por fim obrigados a encarar com olhos prosaicos a sua posição na vida, as suas ligações recíprocas.” Ganha-se em precisão, perde-se em poesia... A frase ganhou asas com o livro do filósofo marxista norte-americano Marshall Berman, que a usou para título do seu ensaio sobre a modernidade, que ele analisa começando pelo “Fausto”, de Goethe, e é repetidamente citada — talvez até já tenha sido usada em publicidade, um dos meios mais eficazes de esvaziamento ou adulteração de sentidos (que o Allgarve nos tenha ensinado alguma coisa), mais um sintoma do “estado líquido” em que nos encontramos mergulhados, conceito de Zygmunt Bauman que ele explana em vários livros, não tão longe assim de Berman. Mas se tudo o que é sólido se dissolve no ar, o que se dissolve no ar não desaparece, pelo menos de acordo com Lavoisier, que nos garante que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo de transforma. Regressando, pois, ao sentido pragmático inicial da frase do “Manifesto Comunista”, ocorre perguntar: os refugiados que entretanto deixaram de ocupar a frente das notícias volatizaram-se para onde?”

Sem comentários: