quinta-feira, julho 21, 2016

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 - Edição Nº2225  -  21-7-2016

A Frente Leste

Na passada segunda-feira, por volta da hora de jantar, a TVI24 transmitiu mais uma reportagem no âmbito da sua rubrica «Observatório do Mundo», aliás habitualmente preenchida com conteúdos resultantes de uma colaboração permanente com um canal público norte-americano. Recorrendo a uma graçola pateta, poder-se-á dizer que desta vez a TVI24 fez uma escolha errada ou pela reportagem transmitida ou pela hora da transmissão, pois o que nos foi ali contado e mostrado era de todo incompatível com uma digestão tranquila.
A reportagem falava-nos dos países bálticos, talvez sobretudo da Lituânia, e da azáfama que por lá vai em matéria militar. E explicava-nos o motivo de tão intensa mobilização de facto lato senso, pois depressa se entendeu que se trata não apenas de blindados e canhões, de aviões e de mísseis, mas também de colocar os espíritos em pé-de-guerra. E de guerra contra quem, como perguntaria algum mais distraído? Contra a Rússia, naturalmente, como nos bons velhos tempos da Guerra Fria para alguns talvez de saudosa memória. A questão, como pacientemente nos foi explicado, é que a URSS, quer dizer, a Rússia, não é de fiar, e um dia destes bem pode querer lançar-se sobre qualquer dos países bálticos, ou sobre todos eles, e fincar-lhes os dentes tal como se lançou sobre a Ucrânia. Aqui, um telespectador ingénuo poderia lançar uma pergunta em tom de dúvida: lançou?
Não é certo que todas as agências internacionais, democráticas e de insuspeitável espírito ocidental, informam que na Ucrânia está em perfeita tranquilidade um poder amigo e venerador do Ocidente, por sinal manifestamente mancomunado com poderosos grupos neonazis e ostensivamente inimigo dos comunistas e de quem com os comunistas se pareça? Não é sabido e confirmado que da Ucrânia só se separou, por expressa vontade da população, uma parcela habitada por quem fala a língua russa e tem a clara vontade de estar integrado na Federação Russa, o que foi confirmado nas urnas? Não é certo que estes dados, obviamente fundamentais, são por cá conhecidos graças aos «media» ocidentais e não a eventuais panfletos de propaganda russa distribuídos à socapa por antigos agentes do KGB no desemprego?
É natural, pois, que o telespectador não acéfalo pergunte onde estarão os sinais das garras do urso moscovita cuja inata agressividade é agora invocada para manter o clima de pé-de-guerra nos países bálticos tão encostadinhos à fronteira russa?

Depois de Spínola
Durante a Segunda Guerra Mundial de abominável memória, a Frente Leste era a longuíssima linha de combates que se estendia desde a fronteira fino-soviética, ao Norte, até aos territórios banhados pelo Mar Negro, ao Sul. Nessa Frente Leste chegaram a combater e naturalmente a morrer os espanhóis da chamada Divisão Azul que Francisco Franco para lá mandou. Quanto a portugueses, só há memória da presença de António Spínola, então já decerto oficial superior mas ainda não general, que por lá andou na qualidade formal de observador e decerto de monóculo à prussiana encaixado na órbita para observar melhor.
É óbvio, pois, que a Frente Leste foi uma realidade sinistra e verdadeiramente criminosa. Não espantará, assim, que uma reportagem que factualmente dá conta de preparativos bélicos com vista a um eventual conflito, mesmo que sob a invocação de se tratar de cuidados preventivos, cause péssima impressão ao telespectador que tenha memória histórica e suscite preocupações. Subsiste, e ainda bem, a convicção de que não se regressará à Guerra Fria, esse jogo de risco mortal, mas o que a reportagem transmitida pela TVI24 nos contou, o que talvez tenha tentado meter-nos na cabeça, não é nada que nos ajude a ter sonos tranquilos.
Para mais, como informação adicional, minúscula no quadro global mas desagradável, sabe-se que por lá, por aquelas fronteiras russo-bálticas, também estão militares e material portugueses. Já nos bastava a vergonhosa presença de Spínola em 41 ao lado da Wehrmacht. Mas a vida é assim: nunca sabemos ao certo para o que é que estamos guardados. Ou para o que é que nos querem guardar.

Correia da Fonseca

1 comentário:

Olinda disse...

Correia da Fonseca sempre certo. É extraordinária a sua escrita, simples mas com a ponta de ironia tão peculiar,que cativa quem o lê.Bjo