Novas da Galiza - Entrevista
completa a Manuel Rocha, histórico membro da banda portuguesa Brigada Victor
Jara, realizada por Ana Paz para o Novas da Galiza.
Uma versão resumida desta entrevista foi publicada no número 96 do Novas da
Galiza. Aqui apresentamos a versão integral.
Manuel Vaz Pires da Rocha. Nasceu em Coimbra
(Portugal) no ano de 1962. Desde 1977, nunca mais abandonou os Brigada Victor
Jara. Formou-se em Violino na antiga URSS. O seu nome tem surgido ao longo dos
anos nas listas da Coligação Democrática Unitária (CDU), que funde o Partido
Comunista Português (PCP), de que é um membro destacado, com o Partido
Ecologista "Os Verdes" (PEV). Professor de violino, assume ainda a direcção do
Conservatório de Música Coimbra. Acrescentaria algo ao seu cartão de cidadão do
mundo?
Operário da música às vezes, animador de sessões
para crianças quando se trata de viajar pelos significados da música (sem
paternalismos, guia apenas). Estreei-me com a Brigada num disco que nunca chegou
a sair, com canções da Guerra Civil Espanhola. E com a Brigada o primeiro foi o
Tamborileiro. Entrei no grupo em 1977, durante os espectáculos de apresentação
do Eito Fora.
NdGz - Isso não vem na biografia oficial;
mas afinal entrou em 1977?
Em 1977, sim. Tinha 14 anos, estava de regresso
das campanhas de alfabetização do Movimento Alfa, e um músico da Brigada
ouviu-me tocar numa festa para crianças, numa Comissão de Moradores (foi há
tanto tempo!). Precisavam de um violino e os ditos não abundavam, na época.
NdGz - E daí foi um pequeno passo até à
antiga URSS?
Entrei na Brigada e logo em Abril de 1978 o grupo
foi convidado a apresentar-se na URSS. Mas confesso que não morri de amores pelo
socialismo real, no meu primeiro encontro com o país de Lenine. A imagem da URSS
era muito idealizada, na época. E o país pareceu-me muito estranho, com cartazes
dos dirigentes do PCUS por todo o lado. Ora eu já era militante de um partido
que recusava o culto da personalidade. Mas, na altura, não estava nos meus
horizontes vir a viver naqueles lados. Fui parar à URSS por causa de uma
namorada. Achou que a vida em Coimbra era muito insuficiente (e era) e
"obrigou-me" a pedir uma bolsa para ir estudar para "fora". Na altura, estava em
Coimbra um casal de velhos dirigentes comunistas, a Sofia Ferreira e o António
Santo. Subi ao Centro de Trabalho e perguntei ao Santo se havia possibilidade de
pedir uma bolsa para ir estudar para um país socialista. Disse-me que iria
averiguar e passados dois meses o meu pai apareceu no Vale de Rossim, onde eu
estava acampado com outra namorada (gabarolanço lusitano) e disse-me: "o Santo
ligou lá p'ra casa. Partes para Moscovo na próxima quarta-feira". E fui.
NdGz - Com 14 anos andava nas campanhas
de alfabetização.
Foi duro. Fiquei colocado em Malpica do Tejo,
distrito de Castelo Branco.
NdGz - Começou então muito cedo a
experiência de uma atitude social independente das iniciativas do
Estado.
Durante o dia trabalhávamos na cooperativa
Camponês Livre e à noite alfabetizávamos os camponeses na escola primária.
NdGz - ... e essa atitude ainda hoje a
mantém. Conte lá.
Mas hoje é diferente. Na altura vivia-se um ambiente de resistência à investida da direita, na sequência da queda do 5º governo provisório e do 25 de Novembro.
Mas havia, ainda, focos de resistência. As cooperativas ainda eram territórios de "construção do socialismo". Era trabalho militante, portanto. Mas sem ser partidariamente enquadrado. Usávamos o método do pedagogo brasileiro Paulo Freire. A primeira palavra escrita que ensinávamos era LUTA. Mas a primeira coisa que as pessoas queriam aprender era a escrever o seu nome (a assinatura nos cheques, nas folhas oficiais era um sinal de recusa do analfabetismo). Foi a experiência mais importante da minha juvenil existência. Sou neto de camponeses, mas essa era uma realidade meio afectiva, meio romanceada. Viver ali foi realmente marcante. Tanto, que cheguei a querer
desistir - disse-o por carta ao meu pai. Na volta do correio recebi um discurso
ideológico-amoroso que me exortava à aprendizagem da vida onde quer que ela me
acontecesse.
NdGz - É dessa confluência que surge o
ecologismo? Que anda a fazer agora em Coimbra e arredores pela cultura
local?
O ecologismo decorre das vivências em meio
familiar. Tinhamos pouco dinheiro e vivia-se muito no meio da natureza. No Verão
ia-se ao rio e quando começou a chegar a poluição de modo visível, o sentido
ecológico era uma reacção natural de sobrevivência. Faço pouco pela cultura
local, no sentido "antropológico" do termo.
NdGz -É verdade, nessa região, como aliás
na maior parte da Galiza, existe uma grande tradição de técnicas "familiares"
que se vão perdendo.
Parece-me que a Galiza deslumbrou-se menos com a
"modernidade". Seja por razões de enraizamento ou de resistência nacional (e
nacionalista) encontra-se mais na Galiza do que em Portugal, essa chama da
partilha dos saberes ancestrais. Lembro-me de ter ficado muito impressionado em
Vigo com o Museu do Povo Galego. Guardo, ainda, na parede da sala de estar, um
cartaz lindíssimo de uma exposição de barcos de pesca artesanal galegos.
NdGz - Além da militância no PCP está
actualmente ligado a alguma associação local?
Sou sócio do Ateneu de Coimbra, uma colectividade
que teve, no tempo do fascismo, uma grande actividade cultural. Foi ali que
ouvi, ainda antes da Revolução de Abril, o Manuel Freire, o Francisco Fanhais, o
Adriano Correia de Oliveira, o Mário Castrim. Era criança, mas recordo-me do
ambiente conspirativo daqueles momentos.
NdGz - Nada que se pareça com os tempos
de hoje...?
Nada, claro que não. Eu tinha primos na Guerra
Colonial, amigos dos meus pais na prisão, consciência da repressão aos
estudantes e assisti às cargas da polícia nas crises académicas. Essa vivência
foi fundamental para a minha formação enquanto cidadão, mas muito do que
constituía esse tempo morreu já, felizmente.
NdGz - Estou obviamente a puxar o tema do Estado
da nação.
Estado da Nação:
Tenho algum pudor na comparação dos tempos. Mas
não há dúvida de que havia, naquele tempo, uma maior agudização dos conflitos. O
fascismo não era apenas uma curiosidade histórica. Era um sistema aberta e
boçalmente repressivo. E do lado da oposição jogava-se a liberdade, às vezes a
própria vida. Eram tempos acesos. Hoje o capitalismo monopolista, as forças da
alta finança não têm necessidade de exibir um tal poder caceteiro. Aprenderam
que as agências de informação são um meio muito mais eficaz do que a proibição
pura e simples. O Avante! nas bancas à vista de toda a gente é menos nocivo do
que o Avante clandestino. Portugal, o povo português na sua generalidade,
sente-se refém dos "nervos" dos mercados, sem suspeitarem que os mercados, como
os movimentos de massas, são produto da História. Nesse sentido, é menos claro o
ambiente político do que o que se vivia naquele tempo. Mas vive-se melhor.
NdGz -O ambiente chega a ser mesmo
nebuloso, sobretudo depois do episódio do Orçamento de Estado, que foi o
culminar de uma série de outros acontecimentos.
O episódio do Orçamento é uma simulação de
desentendimento que, a haver, se circunscreve à luta pelo exercício do poder
político. Porque o exercício do poder económico está claramente nas mãos dos
grandes accionistas da economia nacional. E hoje é já claro que o poder político
está subordinado ao poder económico (ao contrário do que, a nível da natureza do
regime, está definido na Constituição). Quando um orçamento se aprova num órgão
de soberania para apaziguar os mercados, já não é de política que estamos a
falar, mas de um gigantesco embuste. E isso pode gerar um ambiente de grande
instabilidade social. Muitas guerras se iniciaram em quadros em tudo
semelhantes. Muitas ditaduras se estabeleceram em situações análogas. Mas nem
tudo é mau. Está demonstrada a natureza de classe dos professores, dos
funcionários públicos, dos quadros intelectuais - proletários, afinal – em vez
da classe média que chegaram a pensar ser. A sua riqueza é, simultaneamente, a
sua maior fragilidade: o seu posto de trabalho. Classe em termos sociológicos. É
uma interpretação marxista da sociedade. Tenho vindo a concluir, a esse
propósito, que o acto de maior democraticidade não é o voto, é a greve!
Explico:
O voto é uma opinião sem rosto. Quem o usa em
sinal de protesto fá-lo sem assumir qualquer tipo de responsabilidade. Pelo
contrário, quem protesta através da greve fá-lo por sua conta e risco, mostrando
a cara e sofrendo o desconto do seu salário. Não será por acaso que a abstenção
é a grande vedeta da democracia de sufrágio. Nos tempos que correm não é dos
votos que as forças de direita têm medo. É do movimento de massas. Repare que
este mesmo fenómeno foi o que derrubou os regimes de Leste. Sempre o movimento
de massas. E no Leste, a seguir à conquista do direito a votar, no contexto
sistemas pluripartidários, veio o descrédito da democracia representativa, e a
abstenção é já uma realidade instalada.
NdGz - A revolução seria
possível?
Claro que sim. Seria impensável que a sociedade,
enquanto sistema dinâmico, tivesse chegado ao fim do processo de transformação.
A novidade é que os partidos socialistas e social-democratas assumem, hoje, o
papel de defesa dos monopólios e do capital especulador. Essa é a grande
novidade do nosso tempo – a natureza anti-socialista destes partidos. O
objectivo da actividade política é a tomada do poder, sem que isso tenha de
constituir um pecado. A questão não está no facto de exercer o poder, mas na
forma como ele é exercido.
NdGz - Conhece sobretudo a Galiza
musical.
A Galiza musical é a Galiza política. É a Galiza
que acolhe a música portuguesa como se fosse a sua própria música (e é-o, de
facto). Mas numa perspectiva de criação de identidade, de encontro com as razões
de se ser assim naquela terra, em resultado daquela História. Haverá,
certamente, uma Galiza reaccionária que agita as bandeiras da tradição numa
perspectiva passadista. Mas essa não é a que eu conheço. Eu conheço a Galiza em
que os jovens e os velhos dançam na praça da localidade, a dos jovens aprendem
gaita porque sentem aquele som como traço de singularidade. A Brigada faz mais
sentido em A Guarda do que em Caminha, por muito paradoxal que isso pareça. Uma
vez participei numa manifestação independentista em Compostela. E um
manifestante empunhava uma bandeira portuguesa. Não gostei de ver. Porque, de
facto, Portugal não merece aquela distinção. Fiz parte do grupo de cidadãos que
subscreveram a candidatura da Galiza e do Norte de Portugal a património
imaterial da UNESCO. Estive presente na apresentação da candidatura em Lisboa. A
Galiza fez-se representar pelo responsável máximo da Cultura do Governo Galego.
Portugal fez-se representar pelo chefe de gabinete da Ministra... Não tenho
capacidade para explicar tais paradoxos, mas talvez a explicação esteja na
incapacidade da intelectualidade portuguesa em conviver com a nossa realidade
cultural.
NdGz - Na esquerda portuguesa não lidamos
muito bem com o nacionalismo. Menos ainda com o uso das bandeiras
portuguesas.
Há quem não entenda o carácter internacionalista
do nacionalismo entendido como programa de defesa dos traços identitários. Mas
depois é do bacalhau com batatas que gostamos. E das azeitonas de Elvas. Quem
andou "lá por fora" percebe bem que um ser humano só é aceite como tal se levar
consigo uma herança.
NdGz - O independentismo pode-se
confundir numa primeira manifestação com o nacionalismo de direita, não fosse a
estética e os slogans?
Mas esse nacionalismo reaccionário vê-se à
distância! É o que evoca a grandiosidade da Pátria, não o que canta as suas
ternuras. Um hino franquista é 1000 vezes menos convincente do que um Alalá. E,
no entanto, é este que caracteriza a Galiza.
Talvez pudessemos recriar um pouco melhor as
nossas heranças. A recriação é um exercício. É um caminho capaz de mudar de
rumo.
NdGz - A bandeira...
Deixe lá estar a bandeira! Pelo menos a nossa é
da República, e nisso os galegos estão pior do que nós.
E em relação às nossas heranças, acho que ainda
não ultrapassámos o complexo de menoridade que nos ficou da infantilização da
nossa herança cultural, promovida pelo salazarismo através da Política do
Espírito. Ainda temos a mania da gravatinha. Da roupinha pra parecer bem. Das
mesuras sem sentido, no lugar da gentileza sem engulho. Da reverência ao médico,
da observância subserviente do superior hierárquico. É o país
salazaro-cavaquista no seu melhor. Não me parece que os 10 anos de governação
cavaquista tenham tido um impacto de menosprezar no atraso civilizacional que é
o nosso. Crise actual incluída.
NdGz - A história é só um processo
histórico, tal como a herança cultural.
Claro que sim. Por isso é que qualquer tentativa
de congelamento da história se debate com a inevitabilidade da morte. Eu não
entendo a tradição fora do seu devir transformado. Por isso é que os ranchos
folclóricos são tão caricatos. Ao apresentarem a "tradição" como montra do
passado estão fora do nosso tempo. E não fazem qualquer sentido.
NdGz - Mas a tradição é já um
congelamento, ou melhor uma recriação (como diz o seu camarada Hobsbawm, por
oposição a hábitos e rotinas).
A tradição não é um congelamento. É um sinal
identitário que permite ser transportado. Quando congela é já passado
NdGz - É uma marca carregada de passado
que vive no presente.
A morte das tradições não é uma tragédia. É
apenas uma notícia na coluna necrológica da História
NdGz - Mas tem para isso de ser sujeita
algum tipo de intervenção.
Claro que sim. Mas só é intervencionada quando
alguém a julga útil. E aí persiste. Transformando-se, porém. A Brigada canta
cantigas da ceifa. Há um lado funcional – o da ceifa – que não resiste ao
transporte. Mas há uma dimensão estética – a musical – que permitiu ser gostada
e transformada. Seria caricato ver tipos de Coimbra cantarem aquilo vestidos de
ceifeiros numa seara de tábuas (o palco). Temos, no entanto, a sorte de viver
num tempo que consegue fixar imagens e sons das coisas no seu meio natural. É a
verdade possível, mesmo que desvirtuada por estarem submetidas a uma
descodificação que não é vivencial. Mas é a possível. Do mesmo modo, quem olha a
Gernika no Rainha Sofia de Madrid dificilmente descodificará com exactidão a
intenção e a raiva do Picasso no momento em que a fez.
Por terem percebido no folclore a sua dimensão
lúdica e particular. Todos os espectáculos da Brigada na Galiza convertem-se em
baile popular. É das coisas mais saborosas que há: tocar para que alguém o
aproveite física e animicamente.
NdGz - E quando volta lá?
Não sei. Mas todos os anos calha passar por ali.
Houve um tempo que ía muitas vezes tocar ali: com o açoriano Zeca Medeiros, com
a Brigada, com a Mísia. Agora milito em menos frentes...
2 comentários:
Que bela entrevista!! A tradição dinâmica é bom de ouvir.
Um beijo.
Grande entrevista!
Vejo-o ainda e sempre como um jovem bastante lúcido, muito culto, muito trabalhador, solidário e um GRANDE músico.
Actualmente faz parte de um magnífico Grupo no âmbito do Centenário de Álvaro Cunhal Música com Paredes de Vidro” integrando ainda os músicos Fausto Neves(piano) Carlos Canhoto (saxofone), Joana Resende (piano)e Manuel Pires da Rocha (violino).
BJS,
GR
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