Era em Caxias, trinta homens na sala 2, rés do chão direito.
Éramos 30 homens encarcerados pela PIDE.
Reivindicáramos, lutáramos, e ganháramos, uma hora de música por dia. Ao fim da tarde, antes de jantar.
O gira-discos, trazido pelas famílias, entrava acompanhado pelos discos bem minuciosamente inspeccionados pelo "funcionário da PIDE" destacada para a cadeia, que muitos discos rejeitava. Orquestas e autores "do lado de lá", com nomes terminados em itch, ef ou of eram, por norma, rejeitados. Fados não, fados eram todos aceites.
Para este domingo, sentindo o "delicioso pungir de acerbo espinho" - e com intenção de "oferta" a quem me possa vir a ler e ouvir -, fica o registo de uma estória que gosto muito de contar.
Um dos discos era de 45 rotações, de um tal dr. José Afonso, de Baladas de Coimbra.
O disquinho do ainda mal conhecido Zeca Afonso tinha 4 faixas
01 - Os Vampiros (José Afonso)
02 - Canção Vai... e Vem (Paulo Armando/José Afonso)
03 - Menino do Bairro Negro (José Afonso)
04 - As Pombas (Luís de Andrade/José Afonso).
Ouvimo-lo, como se nos libertássemos, como se, por momentos, não houvesse nem grades, nem guardas, nem pides, nem tribunais plenários de esbirros.
Ao segundo ou terceiro dia, apercebemo-nos que um guarda também estava a ouvir atentamente.
Dali, teria ido “bufar” ao “funcionário” da PIDE que os presos da sala 2 rés do chão direito estavam a ouvir “coisas esquisitas”, e o gajo veio logo “ouver” o que se passava.
Eu estava de serviço ao gira-discos e, quando o gajo entrou, já estava a rodar, e a encher a sala, um Prokofief ou um Beethoveen.
O sacana entrou, à bruta como seu apanágio, “tire lá as óperas…ponha esse dum qualquer que cantava em português”. Resmunguei um “se faz favor…”, e coloquei o lado em que estava o Menino do Bairro Negro (a que ele, o canalha, torceu o nariz) e As Pombas; depois, com algum nervosismo mas nenhuma tremura, virei o disquito, e coloquei a agulha do gira-discos, com precisão milimétrica, no arco estreitíssimo entre a última espira de Os Vampiros e a primeira de Canção Vai… e Vem… que veio logo!
O fascista nem ficou até ao fim da faixa. Saiu porta fora, e ainda se ouviu no corredor a ralhar ao guarda por o ter ido incomodar “vocês também exageram, tirando talvez uma coisita ou outra lá do puto do bairro dos pretos aquilo não tem mal nenhum… são fados de Coimbra… até gosto!”
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Bom domingo, como horas de domingo eram todos aqueles tempos de fim de tarde com gira-discos na sala e com o Zeca e outros a visitarem-nos.
Era em Caxias. 30 homens na sala 2 rés do chão direito. Em Julho de 1964.
Baladas de Coimbra - 1963
Músicos: Rui Pato (viola)
4 comentários:
Incrível!
Abreijos
Mais uma deliciosa (mas muito séria) história de uma memória que tem obrigatoriamente de ser conhecida, para que jamais volte a ser passada.
Os PIDES eram para além de assassinos, mesmo ignorantes e burros. Como conseguias ter tanta calma e coragem? Tantas vezes risquei os discos e tu, nos calabouços, frente a duros assassinos, corajosamente colocavas o disco com “precisão milimétrica”de cabeça erguida!
Por tudo isto, obrigada camarada. Vou também ouvir “Os Vampiros”
Grande BJ e bom domingo,
GR
Tão ignorantes que eles eram!!! Tanto como hoje são, porque eles andam por aí, mesmo nas altas esferas do poder.
Um beijo
Eu lembro-me dessa "história", porque o meu Pai ma contou, assim como outras que se passaram convosco. Sou a filha do chefe de sala!!! E ando a ver se convenço o meu Pai a escrever sobre o vosso dia a dia, o de 32 homens fechados numa sala 24h/24h... A ver se ele se enche de coragem!
Um abraço
Margarida
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