domingo, agosto 07, 2011

Era em Caxias, com os Vampiros

Era em Caxias, trinta homens na sala 2, rés do chão direito.
Éramos 30 homens encarcerados pela PIDE.

Reivindicáramos, lutáramos, e ganháramos, uma hora de música por dia. Ao fim da tarde, antes de jantar.
O gira-discos, trazido pelas famílias, entrava acompanhado pelos discos bem minuciosamente inspeccionados pelo "funcionário da PIDE" destacada para a cadeia, que muitos discos rejeitava. Orquestas e autores "do lado de lá", com nomes terminados em itch, ef ou of eram, por norma, rejeitados. Fados não, fados eram todos aceites.
Para este domingo, sentindo o "delicioso pungir de acerbo espinho" - e com intenção de "oferta" a quem me possa vir a ler e ouvir -, fica o registo de uma estória que gosto muito de contar.

Um dos discos era de 45 rotações, de um tal dr. José Afonso, de Baladas de Coimbra.
O disquinho do ainda mal conhecido Zeca Afonso tinha 4 faixas

01 - Os Vampiros (José Afonso)
02 - Canção Vai... e Vem (Paulo Armando/José Afonso)
03 - Menino do Bairro Negro (José Afonso)
04 - As Pombas (Luís de Andrade/José Afonso).

Ouvimo-lo, como se nos libertássemos, como se, por momentos, não houvesse nem grades, nem guardas, nem pides, nem tribunais plenários de esbirros.
Ao segundo ou terceiro dia, apercebemo-nos que um guarda também estava a ouvir atentamente.
Dali, teria ido “bufar” ao “funcionário” da PIDE  que os presos da sala 2 rés do chão direito estavam a ouvir “coisas esquisitas”, e o gajo veio logo “ouver” o que se passava.

Eu estava de serviço ao gira-discos e, quando o gajo entrou, já estava a rodar, e a encher a sala, um Prokofief ou um Beethoveen.
O sacana entrou, à bruta como seu apanágio, “tire lá as óperas…ponha esse dum qualquer que cantava em português”. Resmunguei um “se faz favor…”, e coloquei o lado em que estava o Menino do Bairro Negro (a que ele, o canalha, torceu o nariz) e As Pombas; depois, com algum nervosismo mas nenhuma tremura, virei o disquito, e coloquei a agulha do gira-discos, com precisão milimétrica, no arco estreitíssimo entre a última espira de Os Vampiros e a primeira de Canção Vai… e Vem… que veio logo!
O fascista nem ficou até ao fim da faixa. Saiu porta fora, e ainda se ouviu no corredor a ralhar ao guarda por o ter ido incomodar “vocês também exageram, tirando talvez uma coisita ou outra lá do puto do bairro dos pretos aquilo não tem mal nenhum… são fados de Coimbra… até gosto!”
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Bom domingo, como horas de domingo eram todos aqueles tempos de fim de tarde com gira-discos na sala e com o Zeca e outros a visitarem-nos.
Era em Caxias. 30 homens na sala 2 rés do chão direito. Em Julho de 1964.



Baladas de Coimbra - 1963
Músicos: Rui Pato (viola)

4 comentários:

Ana Martins disse...

Incrível!

Abreijos

GR disse...

Mais uma deliciosa (mas muito séria) história de uma memória que tem obrigatoriamente de ser conhecida, para que jamais volte a ser passada.
Os PIDES eram para além de assassinos, mesmo ignorantes e burros. Como conseguias ter tanta calma e coragem? Tantas vezes risquei os discos e tu, nos calabouços, frente a duros assassinos, corajosamente colocavas o disco com “precisão milimétrica”de cabeça erguida!
Por tudo isto, obrigada camarada. Vou também ouvir “Os Vampiros”

Grande BJ e bom domingo,

GR

Graciete Rietsch disse...

Tão ignorantes que eles eram!!! Tanto como hoje são, porque eles andam por aí, mesmo nas altas esferas do poder.

Um beijo

margarida mirão disse...

Eu lembro-me dessa "história", porque o meu Pai ma contou, assim como outras que se passaram convosco. Sou a filha do chefe de sala!!! E ando a ver se convenço o meu Pai a escrever sobre o vosso dia a dia, o de 32 homens fechados numa sala 24h/24h... A ver se ele se enche de coragem!
Um abraço
Margarida