A IMERGÊNCIA SOCIAL
1.Por muito visual que a televisão seja, é um facto que em muitos momentos é relevantemente aúdio, de onde a óbvia justificação para que se lhe reconheça a condição de Meio Audiovisual. Foi decerto por isso que, enquanto telespectador que sou, ao ouvir pela primeira vez um telejornalista referir-se a um plano governamental aplicável a cerca de três milhões de portugueses e com determinadas linhas de força, digamos assim, nem sequer me ocorreram dúvidas: tratar-se-ia decerto de um Programa de Imergência Social. E o meu equívoco não decorria apenas ou principalmente da homofonia entre imergência e emergência: é que tudo quanto eu ia ouvindo, mais o que mais tarde e por várias vezes viria a ouvir, apontava com suficiente clareza para uma situação de imergência: o governo propunha-se providenciar para que os tais três milhões de portugueses, contas por alto, fossem imergidos ou imersos, isto é, mergulhados, numa situação de pobreza formalmente reconhecida. Bem me queria parecer que este governo Passos Coelho haveria de ter um cariz profundamente transformador, e a confirmação aí está: de uma penada, como se costuma dizer, fica perto de um terço da população portuguesa oficialmente instalada na condição de pedinte e não apenas autorizada, mas até estimulada, a exercer a mendicância. Sobretudo pode mendigar alimentos e medicamentos à beira do fim do prazo de validade, quanto a outros aprovisionamentos e verá mais tarde. E, tanto quanto desde já está previsto, todas estas práticas caritativas deverão ser realizadas por instituições impregnadas do sentido cristianíssimo da esmolinha, agora usando por modéstia o pseudónimo de solidariedade, como se sabe. Pois quando a fome aperta é conveniente que a resignação cristã e a gratidão perante os esmoleres impeça o eventual caminho de sentimentos de indignação e revolta de todo inconvenientes.
2.É sabido que o senhor ministro que gere a pasta de onde saiu este Plano é militante de um partido que se reclama da chamada democracia cristã, rótulo que em toda a Europa ocidental, pelo menos nessa, por sinal tem estado associado a partidos de direita, o que porventura não agradaria sobremaneira à figura supostamente inspiradora dessa opção, Jesus de seu nome próprio, o tal que embirrava com fariseus e vendilhões, que terá ameaçado os ricos com dificuldades expressas numa frase que incluía camelos e agulhas. Mas, entendamo-nos, não é indiscutível que seja necessária para um quadro de libertação sociopolítica uma eventual rejeição do cristianismo propriamente dito, não adulterado com aditamentos e interpretações alegadamente inspiradas pelo Espírito Santo sem que por vezes saibamos de qual se está a falar. Aliás, nem sequer é garantido que sem a difusa herança cristã na Europa e os seus valores de fraternidade, partilha e paz, tivesse ocorrido a Marx, e aos que com ele aprenderam um sentido de luta, o mesmo projecto de uma sociedade justa, pacífica e fraterna. A doença, admitamos que de doença se trata, resulta do aprisionamento pelas classes dominantes de um movimento religioso, mas também ético, que germinou inicialmente nas classes dominadas e vinha impregnado da “fome e sede de Justiça” de que fala o Sermão da Montanha.
3.Acresce que o mesmo Jesus fez questão de mostrar que respeitava o Estado, as suas competências e consequentemente os seus deveres, quando uns provocadores a provável soldo da polícia política do tempo tentaram estender-lhe uma armadilha. Disse então, com clareza a que talvez mereça chamar luminosa, que “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Ora bem: acontece que este respeito pelo Estado e suas funções não o herdaram os que hoje esbulham o Estado de quanto é da sua natural competência por ser o modo como são assegurados os direitos fundamentais dos cidadãos em diferentes áreas. E este Plano de Imergência, alegadamente de Emergência, revela-se duplamente: transfere do Estado, onde são deveres, para sectores privados e confessionais, onde são esmolas, funções que devem manter-se em César, e tende a criar uma monstro cívico que será uma sociedade dividida entre cidadãos possidentes em maior ou menor grau, uma espécie de brâmanes ou equiparados, e sujeitos tendencialmente mendigos, uma espécie de párias que, recorde-se, já são cerca de três milhões entre os portugueses. É duvidoso que a isto se possa chamar uma sociedade cristã, mas não consta que a hierarquia católica se incomode muito com isso.
(publicada no Alentejo Popular)
3 comentários:
Excelente crónica!
Grande texto que desmistifica a abusiva substituição da justiça desejada por Cristo pela caridade tão acarinhada pela religião.
Um beijo.
Tiro o chapéu ao texto mas não o tiro ao autor porque não deve ser pessoa de apreciar o gesto!
(na minha caixa de correio onde dizia "correio" já escrevi "caixa de esmolas" mas até ver ainda continuam apenas a aparecer cartas do banco)
Um abraço sem caridade
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