sexta-feira, dezembro 17, 2010

IDH-2010 - pequena pausa ou apeadeiro

Qualquer indicador ou índice tem a finalidade de representar a realidade. Essa representação deve ser tratada não como a realidade mas uma sua representação. No entanto, as estatísticas têm vindo a tomar tal importância que é cada vez mais frequente ver-se substituída a realidade pelas suas representações. Na política, no crescimento económico, no desenvolvimento humano, esta verificação chega a ser assustadora. Por ilustrarem a manipulação da informação, como arma perversa da luta ideológica. Refira-se, e apenas a título de exemplo, o uso que se faz de sondagens de intenções de voto nas "nossas democracias ocidentais"…
Mas passe eu adiante, que quero ir por outros caminhos menos enlameados ou minados (embora nem todos o sejam menos!).
As representações relativas à situação económico-social das populações têm de ter por base o factor monetário. A medida em PIB, ou em RNB, é indispensável. Mas em que valor? Não pode ser físico, em quilos, litros, metros, ou "paletes". Naturalmente (porque resultado de um real processo histórico) será em medida monetária, no equivalente geral. E assim nos encontramos no âmago da economia política. Na questão do valor e como o definir e medir(*). Uma unidade de medida comum é tão indispensável como se foi tornando cada vez mais um instrumento usado com fins que servem os interesses (de classe) dominantes.
Venhamos ao que, agora, importa. O nível de crescimento económico pode ser assimilado à riqueza das nações e medir-se em RNB per capita, numa moeda (dólar), com uma correcção técnica que se chama paridades de poder de compra. É muito, mas de modo nenhum é tudo e pode ser, e é, falseador. Porque é uma média, não entra com as desigualdades de distribuição pelas “cabeças”, alimentos e armas e petróleo "valem" o mesmo quando traduzidos em moeda.
79 mil dólares de RNB por habitante do Qatar são, sobretudo, galões de petróleo possuídos por uma pequeníssima minoria dos 835 mil habitantes da nação e não podem servir, como representação exclusiva da(s) realidade(s), para se comparar com os 22 mil dólares de RNB por habitante de Portugal.
Daí a importância do índice de desenvolvimento humano, como passo – e pequeno e tímido, mas muito importante – que, numa primeira aproximação, nos diz que, incorporando indicadores de saúde e de educação, o Qatar está em 38º, com um IDH de 0,803 e Portugal logo a seguir com um IDH de 0,795 (igual ao do Bahrein, que tem um RNB por habitante de 26,7 mil dólares em ppc), enquanto que, no indicador estritamente monetário, o Qatar seria o 2º em aparente riqueza das nações (o 1º seria o Liechtenstein, minúsculo país que é uma autêntica lavandaria de dinheiro.., onde vivem “principescamente” 30 mil habitantes), e Portugal guardaria o 40º lugar na lista dos 169 países para que o PNUD apurou dados.
É com estas prevenções que devemos usar as representações quantitativas. Trabalhando-as com… pinças.
E, a seguir, falarei de Cuba no IDH!
___________
(*) – Marx, numa carta de 27 de Abril de 1867, sobre O Capital:
«O que há de melhor no meu livro (e aí repousa toda a compreensão) é que
1º - como o sublinho desde o começo, o trabalho tem um carácter duplo segundo ele se exprime em valor de uso ou em valor de troca;
2º - a mais-valia, (que) é tratada independentemente das suas formas particulares, tais como o lucro, juro, renda financeira, etc. (...)»

4 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Que bom professor que és!!!!
Julgo que agora compreendo o que significava o quadro que apresentaste num post anterior.

Um beijo.

samuel disse...

Muito bom!
Parece um post da "Atlântis"... cristalino, mas sem o preço exorbitante. :-)))

Abraço.

José Rodrigues disse...

Um país que me mete sempre muita confusão é o Luxemburgo.Acho que é/deve ser(?)tipo Liechtenstein..."lavandaria".


Abraço

Anónimo disse...

Uma abordagem diferente, que não é contraditória nem nega a pertinência e importância do índice de desenvolvimento humano, para corrigir a imagem falseadora, como lhe chamou o Sérgio, das médias do PIB per capita ou agora do RNB per capita (em paridades de poder de compra) – na verdade, o mais adequado seria excluir as depreciações e trabalhar com o rendimento nacional líquido per capita – é seguir uma velha sugestão, de 1976, do prémio Nobel Amartya Sem, e ajustar o rendimento per capita por um factor que penalize os países com maiores desigualdades. A medida apropriada seria RNLpc x (1 – Gini), isto é, multiplicar o rendimento nacional líquido per capita (ou, à falta deste, o RNBpc) pelo factor de “1 menos o coeficiente de Gini”, que traduziria a menor ou maior desigualdade da distribuição do rendimento (este factor, ao contrário do habitual coeficiente de Gini, medida adequada das desigualdades, dá 1 para uma igualdade perfeita e zero para uma desigualdade absoluta).

Anwar Shaikh, com o seu brilhantismo habitual, neste caso em colaboração com Amr Ragab, demonstrou o resultado absolutamente notável de que o referido factor de (1 – Gini) dá uma representação quase perfeita, independentemente do país ser pobre ou rico (e ao longo do tempo), do rendimento relativo dos 70% mais pobres da população, isto é, da grande maioria da população de cada país.

Isso permite que as “falseadoras” (diria o Sérgio) medidas do rendimento médio per capita, multiplicadas pelo dito factor (1 – Gini), forneçam imediatamente o rendimento per capita real dos 70% mais desfavorecidos da população de cada país. É um índice que leva em conta a riqueza de cada país, mas também o modo como ela é distribuída no seu interior. E que dá, imediatamente, uma medida simples para comparar entre países o rendimento per capita real das suas grandes maiorias.

Para quem queira aprofundar o assunto recomendo, numa versão muito acessível, «The Vast Majority Income (VMI): A New Measure of Global Inequality», que pode ser encontrado em http://www.ipc-undp.org/pub/IPCPolicyResearchBrief7.pdf, ou, numa versão mais dura, «An International Comparison of the Incomes of the Vast Majority», que pode ser encontrado em http://homepage.newschool.edu/~AShaikh/VMIPaperIv3j.pdf, ambos da autoria de Anwar Shaikh e Amr Ragab, infelizmente em inglês.

HM