quinta-feira, junho 03, 2010

Diálogos de exilados (Pátria,lugar de exílio...)

Estou a ler (ver som-da-tinta) Dialogues d'exilés, de Bertolt Brecht. Saboreando. E traduzindo pedaços para melhor saborear. E apre(e)nder.

São dois alemães, fugidos do seu país, durante a 2ª guerra mundial, que conversam num bar de uma gare ferroviária. Sobre... tudo.

.
Ziffel
(…) Eles não tinham compreendido
o sentido da palavra democracia.
Eu quero dizê-la no seu sentido literal: poder do povo.
.
Kalle
A palavra “povo” é um termo muito particular,
isso nunca o chocou?
Não tem o mesmo sentido dentro e fora.
De fora, em relação aos outros povos,
os grandes industriais, os fidalgotes, os altos funcionários,
os generais, os bispos, etc.,
fazem naturalmente parte do povo alemão e não de um outro.
Mas no interior, lá onde está o poder,
você ouve sempre esses senhores falar do povo dizendo:
“a turba”, “a gentalha” ou “a gentinha”, etc.;
eles não fazem parte do povo.
O povo bem devia falar a mesma linguagem e dizer que
esses senhores não fazem parte do povo.
Então a expressão “poder do povo” teria todo o sentido,
completamente racional, reconheça-o.
.
Ziffel
Mas isso não seria um poder democrático
mas uma ditadura do povo…
.
Kalle
Exactamente: seria a ditadura de 999 sobre o milésimo.

Ziffel
Isso seria o bom e o bonito se não significasse o comunismo.
Você tem de admitir que o comunismo reduz a nada
a liberdade do indivíduo.

Kalle
Você sente-se livre?

Ziffel
Não particularmente, se me põe a questão assim.
Mas porque deveria trocar
a falta de liberdade em regime capitalista
pela falta de liberdade em regime comunista?
Parece que você aceita, de qualquer maneira,
a falta de liberdade em regime comunista.

Kalle
Sem qualquer dificuldade. Não vou estar com charlatanices.
Ninguém é totalmente livre quando detém o poder,
muito menos o povo.
Também não o são os capitalistas, que é que pensa?
Não são livres, por exemplo,
para deixar um comunista instalar-se
como Presidente da República.
Ou para fabricar a roupa que é necessária,
quanto muito fabricam a que possam vender.
Por outro lado, em regime comunista, não é permitido
deixar-se explorar:
ora aqui está uma liberdade suprimida.

Ziffel
Deixe-me dizer uma coisa: o povo não toma o poder
a não ser em caso de necessidade extrema.
O que resulta do homem só pensar
em caso de extrema necessidade.
Quando a água lhe chega ao rés do pescoço.
As gentes têm medo do caos.

Kalle
Não é medo do caos...
eles acabarão por se encontrar em caves,
nos baixos de casas bombardeadas,
tendo, nas suas costas, SS de revólver em punho.
.
Ziffel
Não terão nada na barriga,
não poderão sepultar as suas crianças,
mas a ordem reinará
e quase não terão necessidade de pensar.


Ziffel empertigou-se. A sua atenção que,

durante as divagações políticas de Kalle,

tinha esmorecido, reanimou-se.


Ziffel
Não queria que ficasse com a impressão que critico essa gente.
Pelo contrário.
Ser lúcido é difícil.
Todo o homem razoável evita-os quanto pode.
Em países como aqueles que conheço,
onde uma tal dose de reflexão é indispensável,
não é possível viver. Aquilo a que chamo viver...


Emborcou o seu copo com ar ansioso.

Pouco depois, separaram-se,

afastaram-se cada um para seu lado.

3 comentários:

Justine disse...

Para ler, e reler, e apre(e)nder!

Fernando Samuel disse...

Grandes diálogos - e como sempre acontece com Brecht, actualíssimos.

Um abraço.

Graciete Rietsch disse...

Óptimo excerto. Apetece mesmo ler o diálogo na totalidae.

Um beijo.